Inês Teotónio Pereira
ionline 2014.11.01
Da escola chegavam-nos notícias de "falta de interesse", "falta de concentração" porque "é muito distraído" e "trabalha pouco"
Um dos meus filhos tinha dificuldades de aprendizagem. Começou a ler tarde, dava erros ortográficos, distraía--se com as moscas (literalmente), não decorava coisa alguma e sempre que podia deixava os trabalhos de casa por fazer. Também se esquecia de tudo, era desorganizado, não dava importância aos testes nem percebia o fundamento das avaliações. Não era competitivo e tinha dificuldade em perceber a importância que os pais e os professores dão à escola. Desde cedo que desenhava com pormenor e aos cinco anos já fazia desenhos em perspectiva e com profundidade, mas não tinha paciência para pintar ou para fazer os traços direitos. Um dia, numa luta renhida com as contas de dividir, levantou a cabeça e desabafou: "Gostava de saber o que é que este lápis pensa se ele conseguisse pensar." Foi mais ou menos nessa altura que descobrimos que usava a parede junto da secretária para desenhar enquanto fingia que estudava. Era também talentoso a representar e conseguia inventar uma história interminável a partir de dois palitos. Da escola chegavam-nos notícias de "falta de interesse", "falta de concentração" porque "é muito distraído" e "trabalha pouco". Em casa, nós, pais, pressionávamos, castigávamos e espremíamos a criança cada vez que chegava mais um recado ou mais uma nota. Sobre os talentos pouco lhe dizíamos porque o tempo era escasso e o calendário escolar não dava tréguas: antes do teatro está a Matemática e antes da criatividade está o Português, sentenciávamos.
No 4.o ano conheceu os livros do Harry Potter e foi assim que se viciou na leitura. Os erros, esses, persistiam e as notas continuavam a sair esforçadas. A motivação era mínima e a escola continuava a ser um mal necessário na qual passava os dias. O Harry Potter era o seu esconderijo. No 6.o ano chegaram os exames e com eles a possibilidade real de fracassar. Assustou--se com a eventualidade e, ajudado pela maturidade, estudou três semanas seguidas sem levantar cabeça, com horas marcadas para as refeições e com objectivos diários impostos por nós. Conseguiu a melhor nota da escola e da vida dele no exame de Matemática e deixou pais e professores de queixo no chão. Gostou da experiência e ainda mais da sensação. Nunca mais repetiu o resultado, mas as notas nunca mais saíram esforçadas, os trabalhos de casa nunca mais ficaram por fazer e nunca mais se denunciou a sua falta de concentração.
Para trás ficou o teatro e do desenho nunca mais ouvimos falar. Diz ele que não desenha bem porque não consegue fazer traços direitos ou imitar paisagens. A comparação com os desenhos fotográficos dos colegas e as classificações suficientes dos professores esfriaram o seu empenho e comprovaram que o seu talento afinal era apenas suficiente. Com a ajuda do tempo acabou por desistir. Dos oito anos da vida escolar do meu filho tiro duas conclusões. A primeira é que durante anos dei mais importância à escola e às considerações dos professores que ao meu filho, dei mais importância às dificuldades denunciadas pelos professores que aos talentos que eu conhecia. Sem saber cavei um fosso de frustrações que aumentava cada vez que chegava uma nota ou um recado, como se cada um deles fosse mais uma prova do seu fracasso (e do meu). Sem querer amolguei-lhe a auto-estima e eduquei-o tendo como referência as pautas escolares.
A segunda é que apesar de mim e da escola ele conseguiu. Conseguiu porque quis, porque um dia resolveu querer. As ameaças, as pressões, os castigos e o desespero perante cada má nota não tiveram qualquer efeito positivo, apenas negativo. As dificuldades de aprendizagem são apenas isso, dificuldades. E não querem dizer mais nada sobre os nossos filhos. No dia em que os confundimos com as dificuldades deles, em que olhamos para eles e em vez de crianças vimos problemas de matemática, os nossos filhos facilmente acreditam que são eles próprios os erros e os problemas. E então sim, as dificuldades perpetuam-se e podem ultrapassar em muito o âmbito da escola. A felicidade e o futuro dos nossos filhos não se medem pelo seu desempenho escolar - que mais cedo ou mais tarde, com mais ou menos trabalho, acaba por se cumprir - mas podem estar comprometidos se nós, pais, os julgarmos e medirmos por isso. O principal problema das dificuldades de aprendizagem é a dificuldade dos pais - não dos filhos - em lidar com elas
2014-11-06
São Nuno de Santa Maria
São Nuno de Santa Maria, o Santo Condestável: evocação por Bento XVI
SNPC 2014.011.06
Edição: Rui Jorge Martins
A Igreja assinala a 6 de novembro a memória do Santo Condestável, que «embora fosse um ótimo militar e um grande chefe, nunca deixou os dotes pessoais sobreporem-se à ação suprema que vem de Deus», como realçou Bento XVI.
Recordamos a evocação de S. Nuno de Santa Maria redigida pelo Vaticano aquando da canonização, seguida de excertos da homilia da missa em que foi declarado santo, presidida pelo atual papa emérito.
«Nuno Álvares Pereira nasceu em Portugal a 24 de junho de 1360, muito provavelmente em Cernache do Bonjardim, sendo filho ilegítimo de fr. Álvaro Gonçalves Pereira, cavaleiro dos Hospitalários de S. João de Jerusalém e Prior do Crato, e de D. Iria Gonçalves do Carvalhal. Cerca de um ano após o seu nascimento o menino foi legitimado por decreto real, podendo assim receber a educação cavalheiresca típica dos filhos das famílias nobres do seu tempo.
Aos treze anos torna-se pajem da rainha D. Leonor, tendo sido bem recebido na Corte e acabando por ser pouco depois cavaleiro. Aos dezasseis anos casa-se, por vontade de seu pai, com uma jovem e rica viúva, D. Leonor de Alvim. Da sua união nascem três filhos, dois do sexo masculino, que morrem em tenra idade, e uma do sexo feminino, Beatriz, a qual mais tarde viria a desposar o filho do rei D. João I, D. Afonso, primeiro duque de Bragança.
Quando o rei D. Fernando I morreu a 22 de outubro de 1383 sem ter deixado filhos varões, o seu irmão D. João, Mestre de Avis, viu-se envolvido na luta pela coroa lusitana, que lhe era disputada pelo rei de Castela por ter desposado a filha do falecido rei. Nuno tomou o partido de D. João, o qual o nomeou Condestável, isto é, Comandante supremo do exército. Nuno conduziu o exército português repetidas vezes à vitória, até se ter consagrado na batalha de Aljubarrota (14 de agosto de 1385), a qual acaba por determinar à resolução do conflito.
Os dotes militares de Nuno eram no entanto acompanhados por uma espiritualidade sincera e profunda. O amor pela eucaristia e pela Virgem Maria são a trave-mestra da sua vida interior. Assíduo à oração mariana, jejuava em honra da Virgem Maria às quartas-feiras, às sextas, aos sábados e nas vigílias das suas festas. Assistia diariamente à missa, embora só pudesse receber a eucaristia por ocasião das maiores solenidades. O estandarte que elegeu como insígnia pessoal traz as imagens do Crucificado, de Maria e dos cavaleiros S. Tiago e S. Jorge. Fez ainda construir às suas próprias custas numerosas igrejas e mosteiros, entre os quais se contam o Carmo de Lisboa e a Igreja de S. Maria da Vitória, na Batalha.
Com a morte da esposa, em 1387, Nuno recusa contrair novas núpcias, tornando-se um modelo de pureza de vida. Quando finalmente se alcançou a paz, distribui grande parte dos seus bens entre os seus companheiros, antigos combatentes, e acabo por se desfazer totalmente daqueles em 1423, quando decide entrar no convento carmelita por ele fundado, tomando então o nome de frei Nuno de Santa Maria.
Impelido pelo Amor, abandona as armas e o poder para revestir-se da armadura do Espírito recomendada pela Regra do Carmo: era a opção por uma mudança radical de vida em que sela o percurso da fé autêntica que sempre o tinha norteado. Embora tivesse preferido retirar-se para uma longínqua comunidade de Portugal, o filho do rei, D. Duarte, de tal o impediu. Mas ninguém pode proibir-lhe que se dedicasse a pedir esmola em favor do convento e sobretudo dos pobres, os quais continuou sempre a assistir e a servir. Em seu favor organiza a distribuição quotidiana de alimentos, nunca voltando as costas a um pedido.
O Condestável do rei de Portugal, o Comandante supremo do exército e seu guia vitorioso, o fundador e benfeitor da comunidade carmelita, ao entrar no convento recusa todos os privilégios e assume como própria a condição mais humilde, a de frade Donato, dedicando-se totalmente ao serviço do Senhor, de Maria — a sua terna Padroeira que sempre venerou —, e dos pobres, nos quais reconhece o rosto de Jesus.
Significativo foi o dia da morte de frei Nuno de Santa Maria, o domingo de Páscoa, 1 de abril de 1431, passando imediatamente a ser reputado de "santo" pelo povo, que desde então o começa a chamar "Santo Condestável".
Mas, embora a fama de santidade de Nuno se mantenha constante, chegando mesmo a aumentar, ao longo dos tempos, o percurso do processo de canonização será bem mais acidentado. Promovido desde logo pelos soberanos portugueses e prosseguido pela Ordem do Carmo, depara com numerosos obstáculos, de natureza exterior. Foi somente em 1894 que o Pe. Anastasio Ronci, então postulador geral dos Carmelitas, consegue introduzir o processo para o reconhecimento do culto do Beato Nuno "desde tempos imemoriais", acabando este por ser felizmente concluído, apesar das dificuldades próprias do tempo em que decorre, no dia 23 de dezembro de 1918 com o decreto Clementissimus Deus do Papa Bento XV.
As suas relíquias foram trasladadas numerosas vezes do sepulcro original para a Igreja do Carmo, até que, em 1961, por ocasião do sexto centenário do nascimento do Beato Nuno, se organizou uma peregrinação do precioso relicário de prata que as continha; mas pouco tempo depois é roubado, nunca mais tendo sido encontradas as relíquias que contivera, tendo sido depostos, em vez delas, alguns ossos que tinham sido conservados noutro lugar. A descoberta em 1966 do lugar do túmulo primitivo contendo alguns fragmentos de ossos compatíveis com as relíquias conhecidas reacendeu o desejo de ver o Beato Nuno proclamado em breve Santo da Igreja.
O Postulador Geral da Ordem, P. Felipe M. Amenós y Bonet, conseguiu que fosse reaberta a causa, que entretanto era corroborada graças a um possível milagre ocorrido em 2000. Tendo sido levadas a cabo as respetivas investigações, o Santo Padre, Papa Bento XVI, dispõe a 3 de julho de 2008 a promulgação do decreto sobre o milagre em ordem à canonização e durante o Consistório de 21 de fevereiro de 2009 determina que o Beato Nuno seja inscrito no álbum dos Santos no dia 26 de abril de 2009.»
Na homilia da missa em que Nuno de Santa Maria foi canonizado, celebrada na Praça de S. Pedro, Vaticano, a 26 de abril de 2009, o papa Bento XVI evocou o Salmo 4: «Sabei que o Senhor me fez maravilhas. Ele me ouve, quando eu o chamo».
«Estas palavras do Salmo Responsorial exprimem o segredo da vida do bem-aventurado Nuno de Santa Maria, herói e santo de Portugal. Os setenta anos da sua vida situam-se na segunda metade do século XIV e primeira do século XV, que viram aquela nação consolidar a sua independência de Castela e estender-se depois pelos Oceanos – não sem um desígnio particular de Deus –abrindo novas rotas que haviam de propiciar a chegada do Evangelho de Cristo até aos confins da terra. São Nuno sente-se instrumento deste desígnio superior e alistado na militia Christi, ou seja, no serviço de testemunho que cada cristão é chamado a dar no mundo», sublinhou.
O atual papa emérito salientou a «intensa vida de oração e absoluta confiança no auxílio divino»: «Embora fosse um ótimo militar e um grande chefe, nunca deixou os dotes pessoais sobreporem-se à ação suprema que vem de Deus».
«São Nuno esforçava-se por não pôr obstáculos à ação de Deus na sua vida, imitando Nossa Senhora, de Quem era devotíssimo e a Quem atribuía publicamente as suas vitórias. No ocaso da sua vida, retirou-se para o Convento do Carmo por ele mandado construir».
«Sinto-me feliz por apontar à Igreja inteira esta figura exemplar nomeadamente pela presença duma vida de fé e oração em contextos aparentemente pouco favoráveis à mesma, sendo a prova de que em qualquer situação, mesmo de caráter militar e bélico, é possível atuar e realizar os valores e princípios da vida cristã, sobretudo se esta é colocada ao serviço do bem comum e da glória de Deus», afirmou Bento XVI.
SNPC 2014.011.06
Edição: Rui Jorge Martins
A Igreja assinala a 6 de novembro a memória do Santo Condestável, que «embora fosse um ótimo militar e um grande chefe, nunca deixou os dotes pessoais sobreporem-se à ação suprema que vem de Deus», como realçou Bento XVI.
Recordamos a evocação de S. Nuno de Santa Maria redigida pelo Vaticano aquando da canonização, seguida de excertos da homilia da missa em que foi declarado santo, presidida pelo atual papa emérito.
«Nuno Álvares Pereira nasceu em Portugal a 24 de junho de 1360, muito provavelmente em Cernache do Bonjardim, sendo filho ilegítimo de fr. Álvaro Gonçalves Pereira, cavaleiro dos Hospitalários de S. João de Jerusalém e Prior do Crato, e de D. Iria Gonçalves do Carvalhal. Cerca de um ano após o seu nascimento o menino foi legitimado por decreto real, podendo assim receber a educação cavalheiresca típica dos filhos das famílias nobres do seu tempo.
Aos treze anos torna-se pajem da rainha D. Leonor, tendo sido bem recebido na Corte e acabando por ser pouco depois cavaleiro. Aos dezasseis anos casa-se, por vontade de seu pai, com uma jovem e rica viúva, D. Leonor de Alvim. Da sua união nascem três filhos, dois do sexo masculino, que morrem em tenra idade, e uma do sexo feminino, Beatriz, a qual mais tarde viria a desposar o filho do rei D. João I, D. Afonso, primeiro duque de Bragança.
Quando o rei D. Fernando I morreu a 22 de outubro de 1383 sem ter deixado filhos varões, o seu irmão D. João, Mestre de Avis, viu-se envolvido na luta pela coroa lusitana, que lhe era disputada pelo rei de Castela por ter desposado a filha do falecido rei. Nuno tomou o partido de D. João, o qual o nomeou Condestável, isto é, Comandante supremo do exército. Nuno conduziu o exército português repetidas vezes à vitória, até se ter consagrado na batalha de Aljubarrota (14 de agosto de 1385), a qual acaba por determinar à resolução do conflito.
Os dotes militares de Nuno eram no entanto acompanhados por uma espiritualidade sincera e profunda. O amor pela eucaristia e pela Virgem Maria são a trave-mestra da sua vida interior. Assíduo à oração mariana, jejuava em honra da Virgem Maria às quartas-feiras, às sextas, aos sábados e nas vigílias das suas festas. Assistia diariamente à missa, embora só pudesse receber a eucaristia por ocasião das maiores solenidades. O estandarte que elegeu como insígnia pessoal traz as imagens do Crucificado, de Maria e dos cavaleiros S. Tiago e S. Jorge. Fez ainda construir às suas próprias custas numerosas igrejas e mosteiros, entre os quais se contam o Carmo de Lisboa e a Igreja de S. Maria da Vitória, na Batalha.
Com a morte da esposa, em 1387, Nuno recusa contrair novas núpcias, tornando-se um modelo de pureza de vida. Quando finalmente se alcançou a paz, distribui grande parte dos seus bens entre os seus companheiros, antigos combatentes, e acabo por se desfazer totalmente daqueles em 1423, quando decide entrar no convento carmelita por ele fundado, tomando então o nome de frei Nuno de Santa Maria.
Impelido pelo Amor, abandona as armas e o poder para revestir-se da armadura do Espírito recomendada pela Regra do Carmo: era a opção por uma mudança radical de vida em que sela o percurso da fé autêntica que sempre o tinha norteado. Embora tivesse preferido retirar-se para uma longínqua comunidade de Portugal, o filho do rei, D. Duarte, de tal o impediu. Mas ninguém pode proibir-lhe que se dedicasse a pedir esmola em favor do convento e sobretudo dos pobres, os quais continuou sempre a assistir e a servir. Em seu favor organiza a distribuição quotidiana de alimentos, nunca voltando as costas a um pedido.
O Condestável do rei de Portugal, o Comandante supremo do exército e seu guia vitorioso, o fundador e benfeitor da comunidade carmelita, ao entrar no convento recusa todos os privilégios e assume como própria a condição mais humilde, a de frade Donato, dedicando-se totalmente ao serviço do Senhor, de Maria — a sua terna Padroeira que sempre venerou —, e dos pobres, nos quais reconhece o rosto de Jesus.
Significativo foi o dia da morte de frei Nuno de Santa Maria, o domingo de Páscoa, 1 de abril de 1431, passando imediatamente a ser reputado de "santo" pelo povo, que desde então o começa a chamar "Santo Condestável".
Mas, embora a fama de santidade de Nuno se mantenha constante, chegando mesmo a aumentar, ao longo dos tempos, o percurso do processo de canonização será bem mais acidentado. Promovido desde logo pelos soberanos portugueses e prosseguido pela Ordem do Carmo, depara com numerosos obstáculos, de natureza exterior. Foi somente em 1894 que o Pe. Anastasio Ronci, então postulador geral dos Carmelitas, consegue introduzir o processo para o reconhecimento do culto do Beato Nuno "desde tempos imemoriais", acabando este por ser felizmente concluído, apesar das dificuldades próprias do tempo em que decorre, no dia 23 de dezembro de 1918 com o decreto Clementissimus Deus do Papa Bento XV.
As suas relíquias foram trasladadas numerosas vezes do sepulcro original para a Igreja do Carmo, até que, em 1961, por ocasião do sexto centenário do nascimento do Beato Nuno, se organizou uma peregrinação do precioso relicário de prata que as continha; mas pouco tempo depois é roubado, nunca mais tendo sido encontradas as relíquias que contivera, tendo sido depostos, em vez delas, alguns ossos que tinham sido conservados noutro lugar. A descoberta em 1966 do lugar do túmulo primitivo contendo alguns fragmentos de ossos compatíveis com as relíquias conhecidas reacendeu o desejo de ver o Beato Nuno proclamado em breve Santo da Igreja.
O Postulador Geral da Ordem, P. Felipe M. Amenós y Bonet, conseguiu que fosse reaberta a causa, que entretanto era corroborada graças a um possível milagre ocorrido em 2000. Tendo sido levadas a cabo as respetivas investigações, o Santo Padre, Papa Bento XVI, dispõe a 3 de julho de 2008 a promulgação do decreto sobre o milagre em ordem à canonização e durante o Consistório de 21 de fevereiro de 2009 determina que o Beato Nuno seja inscrito no álbum dos Santos no dia 26 de abril de 2009.»
Na homilia da missa em que Nuno de Santa Maria foi canonizado, celebrada na Praça de S. Pedro, Vaticano, a 26 de abril de 2009, o papa Bento XVI evocou o Salmo 4: «Sabei que o Senhor me fez maravilhas. Ele me ouve, quando eu o chamo».
«Estas palavras do Salmo Responsorial exprimem o segredo da vida do bem-aventurado Nuno de Santa Maria, herói e santo de Portugal. Os setenta anos da sua vida situam-se na segunda metade do século XIV e primeira do século XV, que viram aquela nação consolidar a sua independência de Castela e estender-se depois pelos Oceanos – não sem um desígnio particular de Deus –abrindo novas rotas que haviam de propiciar a chegada do Evangelho de Cristo até aos confins da terra. São Nuno sente-se instrumento deste desígnio superior e alistado na militia Christi, ou seja, no serviço de testemunho que cada cristão é chamado a dar no mundo», sublinhou.
O atual papa emérito salientou a «intensa vida de oração e absoluta confiança no auxílio divino»: «Embora fosse um ótimo militar e um grande chefe, nunca deixou os dotes pessoais sobreporem-se à ação suprema que vem de Deus».
«São Nuno esforçava-se por não pôr obstáculos à ação de Deus na sua vida, imitando Nossa Senhora, de Quem era devotíssimo e a Quem atribuía publicamente as suas vitórias. No ocaso da sua vida, retirou-se para o Convento do Carmo por ele mandado construir».
«Sinto-me feliz por apontar à Igreja inteira esta figura exemplar nomeadamente pela presença duma vida de fé e oração em contextos aparentemente pouco favoráveis à mesma, sendo a prova de que em qualquer situação, mesmo de caráter militar e bélico, é possível atuar e realizar os valores e princípios da vida cristã, sobretudo se esta é colocada ao serviço do bem comum e da glória de Deus», afirmou Bento XVI.
2014-11-01
O insuportável Dia de Todos os Santos
João Delicado, sj., Ver para além do olhar,
Caro sobrinho: colocas-me diante de uma questão essencial do combate à fé cristã. De facto, há que evitar por todos os meios possíveis que os humanos tomem para si o exemplo de outros que passaram, antes deles, por esta terra. Não há nada mais abominável que um santo que ilumina essa gentalha, ajudando-a a atravessar as dificuldades da vida. Por isso gostava de partilhar contigo quatro estratégias para destruir a imagem de todos os santos. Se as aplicares bem, terás resultados imediatos e duradouros. Aliás, basta aproveitar os exageros desses miseráveis humanos para os afastar do nosso grande Inimigo.
1ª Estratégia: OS SANTOS MILAGREIROS
Esta estratégia talvez seja das mais fáceis de aplicar uma vez que, mesmo sem a nossa ajuda, já toma proporções escabrosamente saborosas. Há humanos cuja formação cristã é tão rudimentar que tomam os santos como uma espécie de deuses aos quais devem adorar. Levam consigo dinheiro, fotografias, velas, papelinhos, depositando neles a secreta esperança de que tudo mude no dia seguinte. É bom acalentar essa esperança e fazer-lhes crer que podem ficar à espera de braços cruzados. É que, conforme constatam que, uma e outra vez, nada muda, acabam por ganhar uma tal frustração que, mudarão de santo em santo até à exaustão; e, se tudo correr em nosso favor, irritar-se-ão com as coisas de Deus e acabarão por se afastar definitivamente do caminho de fé. Os que me preocupam são aqueles que, fazendo exactamente os mesmos gestos, se limitam a pedir a intercessão desses santos para que Deus lhes dê a luz e a força para que ultrapassem as suas dificuldades. E o mais assustador é quando sabem que tudo depende também do próprio esforço. Esses são obstinados; muito difíceis de enganar.
2ª Estratégia: OS SANTOS PÁLIDOS
Algo que me diverte é constatar como alguns humanos representam os santos. Uns, num estilo excessivo cheio de dourados e brilhantes. Outros, no estilo muito despojado, de cabeça caída, cara pálida e olhar ausente. Uns e outros, fazendo uma muito pálida ideia do que seriam os próprios santos, como pessoas, no dia-a-dia. Quando os humanos, através das imagens, são induzidos a crer que os santos pertencem a um tempo muito antigo – ou melhor ainda, mítico - ou que, simplesmente, não parecem deste mundo, e que, se passaram por cá, foi quase por acaso, esse é um grande contributo para a nossa missão. Um outro extremo com o qual me regozijo é quando eles representam os santos nos materiais e na dimensão dos brinquedos das crianças. Não há nada mais agradável que ver os humanos a acreditar em talismãs que levam na carteira ou no carro. Os que nos dão verdadeiras dores de cabeça são aqueles que param a rezar nas igrejas e sabem que aquela imagem é apenas uma representação; ou aqueles que levam uma medalhinha consigo e sabem que ela não tem poder mágicos, mas - algo muito mais insidioso – aproveitam-se dela para abrir o coração Àquele que nós queremos que eles esqueçam.
3ª Estratégia: OS SUPER SANTOS
Sempre que os humanos - com as suas projeções - idealizam os santos, isso deve deixar-nos verdadeiramente satisfeitos. Sempre que, em pinturas ou esculturas, em filmes ou biografias, exageram as qualidades humanas e espirituais dos santos e omitem todo o tipo de sombras, lutas e dificuldades que tiveram, isso dá um efeito espantoso! A ingenuidade dos humanos é tal que, ao representar os santos dessa maneira, não percebem que, em vez de embelezar e oferecer um modelo a si próprios, estão a inventar alguém que nunca existiu; e essa é a melhor forma de criar dois mundos aparentemente afastados: o dos santos e o dos humanos. Não é preciso um esforço imenso para que os humanos se convençam de que nada têm a ver com aquela gente. Aliás, o supra-sumo disto é quando os mantemos na ilusão de que os santos nasceram santos, ou tiveram uma conversão repentina e nunca tiveram que subir a longa escada da santidade! Isso é hilariante; e tem efeitos admiráveis. Qualquer humano fica esmagado pela frustração e pela culpa, ao pensar que é o único que se bate com aquelas tentações ou limitações; e que nunca será capaz de chegar a Deus. Pelo contrário, se condescendermos em que seja mostrada qualquer debilidade ou fragilidade que seja dos santos, é dar oportunidade a que essa gentinha humana se identifique e encontre neles alguma pista para o seu crescimento. Isso é arriscado demais: seria catastrófico para nós!
4ª Estratégia: OS SANTOS-A-EVITAR-A-TODO-O-CUSTO
Independentemente do sucesso das estratégias anteriores, vale tudo para fazer com que os humanos acreditem em santos irreais, santos que nada tenham a ver com as suas vidas. O pior que nos poderia acontecer era que eles descobrissem os santos que acordam a meio da noite - várias vezes - para acudir um filho e, de manhã, agarram em si e ainda vão trabalhar; os santos que passam o dia sentados à secretária, entregando-se a um trabalho monótono mas que sabem beneficiar tanta gente; os santos que ninguém vê, porque não têm condições físicas para sair de casa, ou do hospital, ou do lar; os santos que adormecem no autocarro, apertados e aquecidos pelo respirar de todos, em dia de chuva, e ainda oferecem o lugar; os santos que sujam as mãos no mundo da droga, da miséria ou da política, para limpar a alma da sociedade; os santos, enfim, que arriscam a vida na luta pela justiça e pelo bem comum. Todos esses são os mais ameaçadores para a nossa missão. Neste ponto, é impreterível que persuadamos os cristãos a continuar a declarar santos apenas a padres e religiosos, esquecendo esses outros humanos, que vivem inseridos no mundo. O pior que nos poderia acontecer era que qualquer pessoa na rua considerasse a santidade como algo que tem a ver consigo. Esperemos que isso nunca aconteça. Seria o fim da nossa espécie.
[Casa do Enxofre, no insuportável Dia de Todos Eles]
Vorazmente Teu,
Tio Escritorpe
[Texto inspirado no livro "Vorazmente Teu" de C.S. Lewis]
Caro sobrinho: colocas-me diante de uma questão essencial do combate à fé cristã. De facto, há que evitar por todos os meios possíveis que os humanos tomem para si o exemplo de outros que passaram, antes deles, por esta terra. Não há nada mais abominável que um santo que ilumina essa gentalha, ajudando-a a atravessar as dificuldades da vida. Por isso gostava de partilhar contigo quatro estratégias para destruir a imagem de todos os santos. Se as aplicares bem, terás resultados imediatos e duradouros. Aliás, basta aproveitar os exageros desses miseráveis humanos para os afastar do nosso grande Inimigo.
1ª Estratégia: OS SANTOS MILAGREIROS
Esta estratégia talvez seja das mais fáceis de aplicar uma vez que, mesmo sem a nossa ajuda, já toma proporções escabrosamente saborosas. Há humanos cuja formação cristã é tão rudimentar que tomam os santos como uma espécie de deuses aos quais devem adorar. Levam consigo dinheiro, fotografias, velas, papelinhos, depositando neles a secreta esperança de que tudo mude no dia seguinte. É bom acalentar essa esperança e fazer-lhes crer que podem ficar à espera de braços cruzados. É que, conforme constatam que, uma e outra vez, nada muda, acabam por ganhar uma tal frustração que, mudarão de santo em santo até à exaustão; e, se tudo correr em nosso favor, irritar-se-ão com as coisas de Deus e acabarão por se afastar definitivamente do caminho de fé. Os que me preocupam são aqueles que, fazendo exactamente os mesmos gestos, se limitam a pedir a intercessão desses santos para que Deus lhes dê a luz e a força para que ultrapassem as suas dificuldades. E o mais assustador é quando sabem que tudo depende também do próprio esforço. Esses são obstinados; muito difíceis de enganar.
2ª Estratégia: OS SANTOS PÁLIDOS
Algo que me diverte é constatar como alguns humanos representam os santos. Uns, num estilo excessivo cheio de dourados e brilhantes. Outros, no estilo muito despojado, de cabeça caída, cara pálida e olhar ausente. Uns e outros, fazendo uma muito pálida ideia do que seriam os próprios santos, como pessoas, no dia-a-dia. Quando os humanos, através das imagens, são induzidos a crer que os santos pertencem a um tempo muito antigo – ou melhor ainda, mítico - ou que, simplesmente, não parecem deste mundo, e que, se passaram por cá, foi quase por acaso, esse é um grande contributo para a nossa missão. Um outro extremo com o qual me regozijo é quando eles representam os santos nos materiais e na dimensão dos brinquedos das crianças. Não há nada mais agradável que ver os humanos a acreditar em talismãs que levam na carteira ou no carro. Os que nos dão verdadeiras dores de cabeça são aqueles que param a rezar nas igrejas e sabem que aquela imagem é apenas uma representação; ou aqueles que levam uma medalhinha consigo e sabem que ela não tem poder mágicos, mas - algo muito mais insidioso – aproveitam-se dela para abrir o coração Àquele que nós queremos que eles esqueçam.
3ª Estratégia: OS SUPER SANTOS
Sempre que os humanos - com as suas projeções - idealizam os santos, isso deve deixar-nos verdadeiramente satisfeitos. Sempre que, em pinturas ou esculturas, em filmes ou biografias, exageram as qualidades humanas e espirituais dos santos e omitem todo o tipo de sombras, lutas e dificuldades que tiveram, isso dá um efeito espantoso! A ingenuidade dos humanos é tal que, ao representar os santos dessa maneira, não percebem que, em vez de embelezar e oferecer um modelo a si próprios, estão a inventar alguém que nunca existiu; e essa é a melhor forma de criar dois mundos aparentemente afastados: o dos santos e o dos humanos. Não é preciso um esforço imenso para que os humanos se convençam de que nada têm a ver com aquela gente. Aliás, o supra-sumo disto é quando os mantemos na ilusão de que os santos nasceram santos, ou tiveram uma conversão repentina e nunca tiveram que subir a longa escada da santidade! Isso é hilariante; e tem efeitos admiráveis. Qualquer humano fica esmagado pela frustração e pela culpa, ao pensar que é o único que se bate com aquelas tentações ou limitações; e que nunca será capaz de chegar a Deus. Pelo contrário, se condescendermos em que seja mostrada qualquer debilidade ou fragilidade que seja dos santos, é dar oportunidade a que essa gentinha humana se identifique e encontre neles alguma pista para o seu crescimento. Isso é arriscado demais: seria catastrófico para nós!
4ª Estratégia: OS SANTOS-A-EVITAR-A-TODO-O-CUSTO
Independentemente do sucesso das estratégias anteriores, vale tudo para fazer com que os humanos acreditem em santos irreais, santos que nada tenham a ver com as suas vidas. O pior que nos poderia acontecer era que eles descobrissem os santos que acordam a meio da noite - várias vezes - para acudir um filho e, de manhã, agarram em si e ainda vão trabalhar; os santos que passam o dia sentados à secretária, entregando-se a um trabalho monótono mas que sabem beneficiar tanta gente; os santos que ninguém vê, porque não têm condições físicas para sair de casa, ou do hospital, ou do lar; os santos que adormecem no autocarro, apertados e aquecidos pelo respirar de todos, em dia de chuva, e ainda oferecem o lugar; os santos que sujam as mãos no mundo da droga, da miséria ou da política, para limpar a alma da sociedade; os santos, enfim, que arriscam a vida na luta pela justiça e pelo bem comum. Todos esses são os mais ameaçadores para a nossa missão. Neste ponto, é impreterível que persuadamos os cristãos a continuar a declarar santos apenas a padres e religiosos, esquecendo esses outros humanos, que vivem inseridos no mundo. O pior que nos poderia acontecer era que qualquer pessoa na rua considerasse a santidade como algo que tem a ver consigo. Esperemos que isso nunca aconteça. Seria o fim da nossa espécie.
[Casa do Enxofre, no insuportável Dia de Todos Eles]
Vorazmente Teu,
Tio Escritorpe
[Texto inspirado no livro "Vorazmente Teu" de C.S. Lewis]
2014-10-16
O enigma da colocação central de professores
JOÃO CARLOS ESPADA Público 13/10/2014 - 03:10
Diz o Expresso que "as crises provocadas pela colocação (centralizada) dos professores existem desde 1978, ano em que o sistema foi informatizado e deixou logo de fora 5 mil docentes".
Isso corresponde mais ou menos à memória que tenho da repetição de problemas com a abertura dos anos escolares. Tão repetitiva, que deixei de prestar atenção. Todos os anos, por esta altura, surgem os problemas na colocação central de professores. A gravidade desses problemas varia. Mas a existência de problemas parece invariável.
Não seria altura de perguntar por que motivo devem os professores ser colocados centralmente pelo Ministério da Educação? Não seria altura de olhar para outros sistemas de ensino público e observar como funcionam?
Por coincidência, a última edição de The Economist publica um editorial sobre o ensino público inglês. Esse sistema nem sequer era centralizado: as escolas dependiam apenas do poder municipal. Mesmo assim, há cerca de dez anos, o Governo trabalhista de Tony Blair iniciou uma reforma ambiciosa: as escolas públicas poderiam voluntariamente requerer total autonomia, incluindo face ao poder local.
O actual Governo conservador-liberal manteve a reforma do trabalhista Tony Blair. Gradualmente, mais escolas adquiriram total controlo sobre o seu programa educativo, a contratação de professores e funcionários, bem como o seu próprio orçamento. Dois terços das escolas públicas inglesas, cerca de quatro mil, detém agora o estatuto de "academias", ou escolas públicas autónomas.
Os resultados obtidos pelos alunos das academias têm melhorado mais rapidamente do que os das escolas que permanecem na esfera do controlo político. Nalguns casos, citados por The Economist, os resultados são mesmo espetaculares: escolas com taxas de sucesso de 3% em 2006 registam agora, como academias, taxas de sucesso de 79%. Curiosamente, os sindicatos ingleses continuam a ser fervorosamente contra o novo sistema de autonomia das escolas.
Parece relativamente compreensível que um sistema descentralizado e concorrencial funcione menos mal do que um sistema centralizado ou dependente de decisões políticas. Foi por isso que o modelo soviético faliu: porque assentava num modelo de decisão centralizado, em que os decisores locais não eram livres de tomar as suas próprias decisões — nem eram responsáveis pelos resultados das decisões que (não) tomavam.
Voltando ao caso português, o grande mistério não reside na repetição de problemas na colocação central dos professores. O enorme mistério reside em saber por que motivo toda a gente protesta contra esses problemas — e quase ninguém protesta contra um sistema absurdo de colocação central de professores.
É um verdadeiro enigma. Mas há um famoso alerta de Tocqueville que pode ser útil para uma reflexão séria sobre este enigma nacional. Referindo-se à ameaça que a paixão da igualdade pode constituir contra o usufruto da liberdade — sobretudo naqueles países, como a França, em que a paixão pela igualdade supera a paixão pela liberdade — disse ele em 1840: "(...)Vejo uma multidão imensa de homens semelhantes e de igual condição girando sem descanso à volta de si mesmos, (…) Acima desses homens, ergue-se um poder imenso e tutelar que se encarrega sozinho da organização dos seus prazeres e de velar pelo seu destino. É um poder absoluto, pormenorizado, ordenado, previdente e suave. Seria semelhante ao poder paternal se, como este, tivesse por objectivo preparar os homens para a idade viril; mas ele apenas procura, pelo contrário, mantê-los irrevogavelmente na infância. Agrada-lhe que os cidadãos se divirtam, conquanto pensem apenas nisso. Trabalha de boa vontade para lhes assegurar a felicidade, mas com a condição de ser o único obreiro e árbitro dessa felicidade. Garante-lhes a segurança, previne e satisfaz as suas necessidades, facilita-lhes os prazeres, conduz os seus principais assuntos, dirige a sua indústria, regulamenta as suas sucessões, divide as suas heranças. Será também possível poupar inteiramente aos cidadãos o trabalho de pensar e a dificuldade de viver? (...)
"A igualdade preparou os homens para tudo isto, predispondo-os a aceitar este sofrimento e, até, a considerá-lo um benefício" ( Da Democracia na América, Vol. II, Quarta Parte, Capítulo VI).
Aproveito para deixar estas palavras de Tocqueville à consideração do meu estimado amigo, e colega-cronista no "Público", Paulo Rangel — que amavelmente me tem interpelado nestas páginas.
Diz o Expresso que "as crises provocadas pela colocação (centralizada) dos professores existem desde 1978, ano em que o sistema foi informatizado e deixou logo de fora 5 mil docentes".
Isso corresponde mais ou menos à memória que tenho da repetição de problemas com a abertura dos anos escolares. Tão repetitiva, que deixei de prestar atenção. Todos os anos, por esta altura, surgem os problemas na colocação central de professores. A gravidade desses problemas varia. Mas a existência de problemas parece invariável.
Não seria altura de perguntar por que motivo devem os professores ser colocados centralmente pelo Ministério da Educação? Não seria altura de olhar para outros sistemas de ensino público e observar como funcionam?
Por coincidência, a última edição de The Economist publica um editorial sobre o ensino público inglês. Esse sistema nem sequer era centralizado: as escolas dependiam apenas do poder municipal. Mesmo assim, há cerca de dez anos, o Governo trabalhista de Tony Blair iniciou uma reforma ambiciosa: as escolas públicas poderiam voluntariamente requerer total autonomia, incluindo face ao poder local.
O actual Governo conservador-liberal manteve a reforma do trabalhista Tony Blair. Gradualmente, mais escolas adquiriram total controlo sobre o seu programa educativo, a contratação de professores e funcionários, bem como o seu próprio orçamento. Dois terços das escolas públicas inglesas, cerca de quatro mil, detém agora o estatuto de "academias", ou escolas públicas autónomas.
Os resultados obtidos pelos alunos das academias têm melhorado mais rapidamente do que os das escolas que permanecem na esfera do controlo político. Nalguns casos, citados por The Economist, os resultados são mesmo espetaculares: escolas com taxas de sucesso de 3% em 2006 registam agora, como academias, taxas de sucesso de 79%. Curiosamente, os sindicatos ingleses continuam a ser fervorosamente contra o novo sistema de autonomia das escolas.
Parece relativamente compreensível que um sistema descentralizado e concorrencial funcione menos mal do que um sistema centralizado ou dependente de decisões políticas. Foi por isso que o modelo soviético faliu: porque assentava num modelo de decisão centralizado, em que os decisores locais não eram livres de tomar as suas próprias decisões — nem eram responsáveis pelos resultados das decisões que (não) tomavam.
Voltando ao caso português, o grande mistério não reside na repetição de problemas na colocação central dos professores. O enorme mistério reside em saber por que motivo toda a gente protesta contra esses problemas — e quase ninguém protesta contra um sistema absurdo de colocação central de professores.
É um verdadeiro enigma. Mas há um famoso alerta de Tocqueville que pode ser útil para uma reflexão séria sobre este enigma nacional. Referindo-se à ameaça que a paixão da igualdade pode constituir contra o usufruto da liberdade — sobretudo naqueles países, como a França, em que a paixão pela igualdade supera a paixão pela liberdade — disse ele em 1840: "(...)Vejo uma multidão imensa de homens semelhantes e de igual condição girando sem descanso à volta de si mesmos, (…) Acima desses homens, ergue-se um poder imenso e tutelar que se encarrega sozinho da organização dos seus prazeres e de velar pelo seu destino. É um poder absoluto, pormenorizado, ordenado, previdente e suave. Seria semelhante ao poder paternal se, como este, tivesse por objectivo preparar os homens para a idade viril; mas ele apenas procura, pelo contrário, mantê-los irrevogavelmente na infância. Agrada-lhe que os cidadãos se divirtam, conquanto pensem apenas nisso. Trabalha de boa vontade para lhes assegurar a felicidade, mas com a condição de ser o único obreiro e árbitro dessa felicidade. Garante-lhes a segurança, previne e satisfaz as suas necessidades, facilita-lhes os prazeres, conduz os seus principais assuntos, dirige a sua indústria, regulamenta as suas sucessões, divide as suas heranças. Será também possível poupar inteiramente aos cidadãos o trabalho de pensar e a dificuldade de viver? (...)
"A igualdade preparou os homens para tudo isto, predispondo-os a aceitar este sofrimento e, até, a considerá-lo um benefício" ( Da Democracia na América, Vol. II, Quarta Parte, Capítulo VI).
Aproveito para deixar estas palavras de Tocqueville à consideração do meu estimado amigo, e colega-cronista no "Público", Paulo Rangel — que amavelmente me tem interpelado nestas páginas.
2014-09-18
Glórias britânicas
José Maria C. S. André
Acabaram-se as minhas férias no Reino Unido, durante as quais assisti a aulas muito interessantes sobre a história da Igreja naquele país. Aprendi imenso.
Os historiadores ingleses não escondem alguma página triste, como a perseguição aos católicos (ainda não completamente abolida em certos aspectos práticos), no entanto, o balanço é extraordinário, até na lucidez com que este povo olha o seu passado.
Um ponto alto da história britânica é a participação política. A democracia foi arraigando e no século XVIII já era uma conquista civilizacional razoavelmente consolidada.
Outra das glórias do país é a abolição da escravatura moderna. A escravatura já desaparecera na Europa nos primeiros séculos do cristianismo e assim continuou durante toda a Idade Média, mas depois, com os descobrimentos marítimos, voltou. Reagiram os Papas, alguma gente de bom coração esforçou-se por libertar os escravos e proporcionar-lhes melhores condições mas, apesar de pequenos êxitos, os interesses económicos prevaleceram e a Europa voltou a praticar a escravatura. Foi em Inglaterra, no final do século XVIII, que a situação se alterou, sobretudo graças a William Pitt e a William Wilberforce (lembram-se do filme «Amazing Grace»?).
William Pitt, considerado o melhor Primeiro-Ministro inglês, chegou ao cargo com 24 anos de experiência, ou, para o dizer de forma mais clara, foi Primeiro-Ministro com 24 anos de idade. Dizia-se que «would not last out the Christmas season» (não ia chegar ao Natal), mas sobreviveu 17 anos, com vários êxitos eleitorais retumbantes. Pitt ficou na história pelo sucesso económico e social, pela «revolução» na política monetária, por vitórias militares (como a batalha de Trafalgar, que aniquilou a armada napoleónica, desejosa de invadir a Grã-Bretanha). Sobretudo, Pitt ficou conhecido pela sua integridade pessoal e pelas causas cívicas em que se empenhou, principalmente a abolição da escravatura, conseguida ao fim de duas décadas e meia de esforço conjunto com o seu amigo William Wilberforce.
Outro objectivo de William Pitt era mitigar a perseguição aos católicos, mas o rei Jorge III opôs-se, com o argumento de que isso iria contra o juramento que fizera ao tomar posse como rei. Em consequência, Pitt demitiu-se. Entretanto, já tinha conseguido que o espírito prático dos ingleses aceitasse algumas mudanças. Por exemplo, convenceu-os de que era melhor os padres católicos serem formados no seu país do que terem de ir estudar para o estrangeiro, nomeadamente para França, expostos às loucuras ideológicas da Revolução Francesa. Com esse argumento de sentido prático, conseguiu que um rei ferreamente anticatólico fundasse e financiasse a Maynooth University, em 1795, uma universidade católica!
O grande colaborador de Pitt, William Wilberforce, homem de profunda religiosidade, também tinha simpatia pelos católicos. Tentou, sem êxito, que o catolicismo fosse aceite e que os católicos pudessem ser funcionários públicos e até ser eleitos para o Parlamento. Grande parte da família Wilberforce converteu-se ao catolicismo durante o século XIX e isso teve grande eco, porque eram personalidades de grande craveira e muito estimadas.
Outro exemplo do espírito prático dos ingleses é a forma como promoveram a escolaridade. Em vez de criarem escolas estatais, apoiaram as boas escolas. Foi deste modo que as escolas católicas floresceram com o apoio do Estado, porque tinham prestígio académico e eram preferidas por muitas famílias, apesar de o número de católicos na época ser ínfimo. Esta política fez com que a taxa de alfabetização chegasse a 100% no Reino Unido, um século antes de alcançar 10% em Portugal e em muitos outros países do mundo.
Ainda hoje, quando os ingleses falam de «escola pública» referem-se a qualquer escola, porque são todas apoiadas pelo Estado, a começar pelas católicas. Quando lhes explico que em Portugal «escola pública» significa «escola estatal», eles abrem a boca de espanto: vocês deixam que os funcionários públicos fiquem com o vosso dinheiro e decidam a educação dos vossos filhos?
Há coisas que ultrapassam a capacidade de compreensão dos ingleses.
Acabaram-se as minhas férias no Reino Unido, durante as quais assisti a aulas muito interessantes sobre a história da Igreja naquele país. Aprendi imenso.
Os historiadores ingleses não escondem alguma página triste, como a perseguição aos católicos (ainda não completamente abolida em certos aspectos práticos), no entanto, o balanço é extraordinário, até na lucidez com que este povo olha o seu passado.
Um ponto alto da história britânica é a participação política. A democracia foi arraigando e no século XVIII já era uma conquista civilizacional razoavelmente consolidada.
Outra das glórias do país é a abolição da escravatura moderna. A escravatura já desaparecera na Europa nos primeiros séculos do cristianismo e assim continuou durante toda a Idade Média, mas depois, com os descobrimentos marítimos, voltou. Reagiram os Papas, alguma gente de bom coração esforçou-se por libertar os escravos e proporcionar-lhes melhores condições mas, apesar de pequenos êxitos, os interesses económicos prevaleceram e a Europa voltou a praticar a escravatura. Foi em Inglaterra, no final do século XVIII, que a situação se alterou, sobretudo graças a William Pitt e a William Wilberforce (lembram-se do filme «Amazing Grace»?).
William Pitt, considerado o melhor Primeiro-Ministro inglês, chegou ao cargo com 24 anos de experiência, ou, para o dizer de forma mais clara, foi Primeiro-Ministro com 24 anos de idade. Dizia-se que «would not last out the Christmas season» (não ia chegar ao Natal), mas sobreviveu 17 anos, com vários êxitos eleitorais retumbantes. Pitt ficou na história pelo sucesso económico e social, pela «revolução» na política monetária, por vitórias militares (como a batalha de Trafalgar, que aniquilou a armada napoleónica, desejosa de invadir a Grã-Bretanha). Sobretudo, Pitt ficou conhecido pela sua integridade pessoal e pelas causas cívicas em que se empenhou, principalmente a abolição da escravatura, conseguida ao fim de duas décadas e meia de esforço conjunto com o seu amigo William Wilberforce.
Outro objectivo de William Pitt era mitigar a perseguição aos católicos, mas o rei Jorge III opôs-se, com o argumento de que isso iria contra o juramento que fizera ao tomar posse como rei. Em consequência, Pitt demitiu-se. Entretanto, já tinha conseguido que o espírito prático dos ingleses aceitasse algumas mudanças. Por exemplo, convenceu-os de que era melhor os padres católicos serem formados no seu país do que terem de ir estudar para o estrangeiro, nomeadamente para França, expostos às loucuras ideológicas da Revolução Francesa. Com esse argumento de sentido prático, conseguiu que um rei ferreamente anticatólico fundasse e financiasse a Maynooth University, em 1795, uma universidade católica!
O grande colaborador de Pitt, William Wilberforce, homem de profunda religiosidade, também tinha simpatia pelos católicos. Tentou, sem êxito, que o catolicismo fosse aceite e que os católicos pudessem ser funcionários públicos e até ser eleitos para o Parlamento. Grande parte da família Wilberforce converteu-se ao catolicismo durante o século XIX e isso teve grande eco, porque eram personalidades de grande craveira e muito estimadas.
Outro exemplo do espírito prático dos ingleses é a forma como promoveram a escolaridade. Em vez de criarem escolas estatais, apoiaram as boas escolas. Foi deste modo que as escolas católicas floresceram com o apoio do Estado, porque tinham prestígio académico e eram preferidas por muitas famílias, apesar de o número de católicos na época ser ínfimo. Esta política fez com que a taxa de alfabetização chegasse a 100% no Reino Unido, um século antes de alcançar 10% em Portugal e em muitos outros países do mundo.
Ainda hoje, quando os ingleses falam de «escola pública» referem-se a qualquer escola, porque são todas apoiadas pelo Estado, a começar pelas católicas. Quando lhes explico que em Portugal «escola pública» significa «escola estatal», eles abrem a boca de espanto: vocês deixam que os funcionários públicos fiquem com o vosso dinheiro e decidam a educação dos vossos filhos?
Há coisas que ultrapassam a capacidade de compreensão dos ingleses.
2014-09-15
A sociedade aberta e os seus inimigos
JOÃO CARLOS ESPADA Público, 15/09/2014
Quando a notícia me chegou, estava então a leccionar na Universidade de Brown, nos EUA, apressei-me a voar para Londres e ainda pude estar no funeral de Popper. Nessa noite, viajando de carro com Ralf Dahrendorf entre Londres e Oxford, mantivemos longos períodos de silêncio. O nosso herói tinha partido. Mas o seu exemplo e os seus ensinamentos ficavam connosco.Na próxima quarta-feira, passarão exactamente 20 anos sobre a morte de Karl Popper, a 17 de Setembro de 1994.
Dei conta do funeral de Popper neste mesmo jornal, onde também era cronista naquela data. Talvez não seja despropositado recordar hoje o grande filósofo austro-britânico e algum do vasto legado intelectual que nos deixou.
Embora Popper tenha sido sobretudo um filósofo da ciência e do conhecimento, o seu livro mais famoso foi A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos — uma obra de filosofia política que escreveu entre 1938 e 1943, durante o exílio voluntário na Nova Zelândia, e que apresentou como o seu "esforço de guerra" em defesa das democracias ocidentais contra os totalitarismos nazi e comunista.
O livro, originalmente publicado em língua inglesa em 1945, é geralmente apontado como um dos mais influentes do século XX. Entre nós, foi inicialmente publicado em 1990, pela Editorial Fragmentos, e foi reeditado pelas Edições 70 em 2012.
A Sociedade Aberta foi aplaudida por filósofos, políticos e estadistas de várias inclinações políticas democráticas, à esquerda e à direita. Em Portugal, Mário Soares e Diogo Freitas do Amaral, declararam-se admiradores do velho filósofo. Tive o privilégio de acompanhar cada um deles em visitas privadas a casa de Karl Popper, em Kenley, perto de Londres, em 1992 e 1993, respectivamente.
O impacto imediato da publicação de A Sociedade Aberta e os seus Inimigos centrou-se na sua crítica demolidora do marxismo, em nome da tradição da liberdade e responsabilidade pessoal.
Em primeiro lugar, Popper reconheceu e elogiou o impulso moral humanitário e "melhorista" subjacente à doutrina de Marx, o impulso para melhorar a sorte dos nossos semelhantes e aliviar o sofrimento humano susceptível de ser evitado. Mas, simultaneamente, acusou a doutrina de Marx de ter abandonado e até "atraiçoado" esse impulso moral humanitário que lhe dera origem, em troca de uma ideologia dogmática e destituída de moral, ou moralmente relativista. Por outras palavras, Karl Popper condenou a mensagem moral de Marx em nome dos próprios princípios morais humanitários de que Marx se reclamara.
Em segundo lugar, Popper dissecou o conteúdo substantivo da doutrina de Marx, agora separada do seu impulso moral, e acusou-a de reaccionária. Colocou-a sem hesitações ao lado das ideologias contrárias à sociedade aberta, as ideologias totalitárias, de esquerda ou de direita, como o nacional-socialismo, ou nazismo, e o fascismo, que "continuam a tentar derrubar a civilização e regressar ao tribalismo". Por outras palavras, Karl Popper condenou a doutrina de Marx em nome da ideia de progresso de que Marx se reclamara.
Em terceiro lugar, Popper criticou duramente a ilusão do "socialismo científico" que Marx acabara por colocar no centro da sua doutrina. Popper mostrou que o "socialismo científico" simplesmente não existe. Trata-se de uma superstição primitiva e profundamente contrária à atitude científica, uma superstição dos que "acreditam que sabem, sem saberem que acreditam", a que Popper chamou de historicismo. Por outras palavras, Popper criticou a doutrina de Marx em nome da atitude científica de que este se reclamara.
Para Popper, o conflito que no século XX opôs as democracias liberais do Ocidente aos totalitarismos nazi e comunista foi, nos seus traços essenciais, um conflito semelhante ao que opôs a democracia ateniense à tirania espartana, no século V aC. As modernas democracias liberais são herdeiras de um longo processo de abertura gradual das sociedades fechadas, tribais e colectivistas do passado – processo que terá tido início em Atenas e noutras civilizações marítimas e comerciais como a da Suméria, e que recebeu um contributo decisivo do Cristianismo.
É esta sociedade aberta que está hoje de novo sob ataque cerrado do fundamentalismo islâmico e, em grau menor, da autocracia russa. Resta saber se ainda queremos defendê-la, ou se vamos render-nos à vulgata politicamente correcta, segundo a qual a culpa dos ataques que sofremos é sempre de nós próprios — da sociedade aberta do Ocidente, a que os seus inimigos chamam capitalista e imperialista.
Quando a notícia me chegou, estava então a leccionar na Universidade de Brown, nos EUA, apressei-me a voar para Londres e ainda pude estar no funeral de Popper. Nessa noite, viajando de carro com Ralf Dahrendorf entre Londres e Oxford, mantivemos longos períodos de silêncio. O nosso herói tinha partido. Mas o seu exemplo e os seus ensinamentos ficavam connosco.Na próxima quarta-feira, passarão exactamente 20 anos sobre a morte de Karl Popper, a 17 de Setembro de 1994.
Dei conta do funeral de Popper neste mesmo jornal, onde também era cronista naquela data. Talvez não seja despropositado recordar hoje o grande filósofo austro-britânico e algum do vasto legado intelectual que nos deixou.
Embora Popper tenha sido sobretudo um filósofo da ciência e do conhecimento, o seu livro mais famoso foi A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos — uma obra de filosofia política que escreveu entre 1938 e 1943, durante o exílio voluntário na Nova Zelândia, e que apresentou como o seu "esforço de guerra" em defesa das democracias ocidentais contra os totalitarismos nazi e comunista.
O livro, originalmente publicado em língua inglesa em 1945, é geralmente apontado como um dos mais influentes do século XX. Entre nós, foi inicialmente publicado em 1990, pela Editorial Fragmentos, e foi reeditado pelas Edições 70 em 2012.
A Sociedade Aberta foi aplaudida por filósofos, políticos e estadistas de várias inclinações políticas democráticas, à esquerda e à direita. Em Portugal, Mário Soares e Diogo Freitas do Amaral, declararam-se admiradores do velho filósofo. Tive o privilégio de acompanhar cada um deles em visitas privadas a casa de Karl Popper, em Kenley, perto de Londres, em 1992 e 1993, respectivamente.
O impacto imediato da publicação de A Sociedade Aberta e os seus Inimigos centrou-se na sua crítica demolidora do marxismo, em nome da tradição da liberdade e responsabilidade pessoal.
Em primeiro lugar, Popper reconheceu e elogiou o impulso moral humanitário e "melhorista" subjacente à doutrina de Marx, o impulso para melhorar a sorte dos nossos semelhantes e aliviar o sofrimento humano susceptível de ser evitado. Mas, simultaneamente, acusou a doutrina de Marx de ter abandonado e até "atraiçoado" esse impulso moral humanitário que lhe dera origem, em troca de uma ideologia dogmática e destituída de moral, ou moralmente relativista. Por outras palavras, Karl Popper condenou a mensagem moral de Marx em nome dos próprios princípios morais humanitários de que Marx se reclamara.
Em segundo lugar, Popper dissecou o conteúdo substantivo da doutrina de Marx, agora separada do seu impulso moral, e acusou-a de reaccionária. Colocou-a sem hesitações ao lado das ideologias contrárias à sociedade aberta, as ideologias totalitárias, de esquerda ou de direita, como o nacional-socialismo, ou nazismo, e o fascismo, que "continuam a tentar derrubar a civilização e regressar ao tribalismo". Por outras palavras, Karl Popper condenou a doutrina de Marx em nome da ideia de progresso de que Marx se reclamara.
Em terceiro lugar, Popper criticou duramente a ilusão do "socialismo científico" que Marx acabara por colocar no centro da sua doutrina. Popper mostrou que o "socialismo científico" simplesmente não existe. Trata-se de uma superstição primitiva e profundamente contrária à atitude científica, uma superstição dos que "acreditam que sabem, sem saberem que acreditam", a que Popper chamou de historicismo. Por outras palavras, Popper criticou a doutrina de Marx em nome da atitude científica de que este se reclamara.
Para Popper, o conflito que no século XX opôs as democracias liberais do Ocidente aos totalitarismos nazi e comunista foi, nos seus traços essenciais, um conflito semelhante ao que opôs a democracia ateniense à tirania espartana, no século V aC. As modernas democracias liberais são herdeiras de um longo processo de abertura gradual das sociedades fechadas, tribais e colectivistas do passado – processo que terá tido início em Atenas e noutras civilizações marítimas e comerciais como a da Suméria, e que recebeu um contributo decisivo do Cristianismo.
É esta sociedade aberta que está hoje de novo sob ataque cerrado do fundamentalismo islâmico e, em grau menor, da autocracia russa. Resta saber se ainda queremos defendê-la, ou se vamos render-nos à vulgata politicamente correcta, segundo a qual a culpa dos ataques que sofremos é sempre de nós próprios — da sociedade aberta do Ocidente, a que os seus inimigos chamam capitalista e imperialista.
2014-09-04
Os novos cátaros
P. Gonçalo Portocarrero de Almada - 4/9/2014
Observador
Um pregador católico inglês, do século passado, escandalizou os seus fiéis ao dizer que era mais provável que a alguém lhe roubassem a carteira numa igreja católica do que num templo anglicano. Inquirido sobre a sua falta de fé na honestidade dos irmãos da sua própria Igreja, esclareceu que, enquanto a Igreja anglicana é só para pessoas respeitáveis, a romana, precisamente porque é católica, ou seja universal, é para todo o tipo de pessoas, ladrões incluídos.
Alguns fiéis aceitam mal esta abertura, que consideram permissiva em demasia. E, por isso, em tempos de crise generalizada da fé e dos bons costumes, optam por se isolarem em pequenos grupos, evitando o pecaminoso contágio e afastando-se dos outros fiéis, não tão exemplares na ortodoxia ou na virtude. Em nome de uma Igreja dos puros, estes novos cátaros fazem da sua intransigência doutrinal o imperativo principal da sua fé, excluindo os pecadores do seu seio e excluindo-se da unidade eclesial. Esquecem, assim, o amor universal de Cristo, que não só conviveu com pecadores públicos, incorrendo no escândalo dos fariseus do seu tempo, como disse também que as mulheres de má-vida os iriam preceder no reino dos Céus (Mt 21, 31). E não relevam que Jesus, como a propósito de Judas Iscariotes fez notar Santo Agostinho, «aguentou um ‘demónio’ entre os seus discípulos até à sua Paixão (Jo 6,70)» (A fé e as obras, 3-5).
Não são só certos crentes que desejam uma Igreja de eleitos, constituída única e exclusivamente por fiéis exemplares. Também os incrédulos se escandalizam quando vislumbram, dentro dos muros dos templos cristãos, homens e mulheres pecadores, como o carteirista do sermão. Quereriam, eles também, uma Igreja sem mancha nem pecado, feita de anjos e não por homens, uma Jerusalém celestial que nada tivesse que ver com as fraquezas deste mundo.
Tanto uns como outros erram, porque se a Igreja é santa na sua origem e finalidade, é e será sempre pecadora nos seus membros terrenos. Assim o disse Cristo quando ensinou que o trigo e o joio devem permanecer juntos até à ceifa final (cf. Mt 13, 29), ou quando comparou o reino dos Céus a uma grande rede de arrasto, que traz consigo todo o tipo de peixes, bons e maus (Mt 13, 47-52). A Igreja de Cristo não está chamada a ser um luxuoso condomínio fechado, para exclusivo uso de umas quantas almas selectas, mas um pobre hospital de campanha, sempre de portas escancaradas para os seus filhos pecadores e para todos os homens de boa vontade. Os odores de santidade são para o outro mundo porque neste, mais do que as boas obras dos virtuosos, é a pestilência das doenças físicas e morais dos arrependidos o incenso com que Deus quer ser glorificado nos seus templos. Ele não veio ao mundo para os sãos, mas para os enfermos (Mc 2, 17) e é maior a sua alegria por um pecador que se converta, do que por noventa e nove justos que perseverem no bem (Lc 15, 1-7).
Vale mais a unidade da Igreja e a sua solidariedade com os pecadores do que esse rigorismo doutrinal, contrário à caridade apostólica. A tentação dos falsos purismos exclusivistas e sectários não é só de agora, porque também Santo Agostinho denunciou, no seu tempo, as «pessoas que só tomam em consideração os preceitos rigorosos, que mandam reprimir os que causam perturbação, que ordenam (…) que se ‘tratem como aos publicanos’ aqueles que desprezam a Igreja, que se repudiem do seu corpo os membros escandalosos (Mt 7,6; 18,17; 5,30)» (id.). Era também este santo doutor quem assim vituperava, energicamente, contra esses falsos pastores: «o seu zelo intempestivo causa muita tribulação à Igreja, porque desejariam arrancar o joio antes do tempo e a sua cegueira faz deles próprios inimigos da unidade de Jesus Cristo» (id.).
O bem da comunhão deve prevalecer sobre qualquer outro bem, porque a caridade é o mandamento novo de Cristo (Jo 13, 34-35), a principal das virtudes cristãs (1Cor 13, 13) e a razão da esperança na salvação de todos os homens, sem excepção. «Tomemos cuidado em não deixarmos entrar no nosso coração pensamentos presunçosos – adverte o santo bispo de Hipona – em não procurarmos destacar-nos dos pecadores, para não nos sujarmos com o seu contacto, em não tentarmos formar como que um rebanho de discípulos puros e santos. Sob o pretexto de não frequentarmos os maus, conseguiríamos apenas romper a unidade» (id.).
Há quem se escandalize por encontrar, na Igreja católica, pessoas cristãs que têm dúvidas de fé, ou que atentaram contra a vida dos seus filhos por nascer, ou que esmoreceram na esperança, ou que vivem em uniões não abençoadas pela Igreja, ou que não conseguem ainda amar e perdoar o próximo, ou que seguem tendências contrárias ao uso natural do corpo, ou que são alcoólicas, ou drogadas. Confesso que rejubilo com essas benditas presenças, em que abunda o pecado e sobreabunda a esperança, não só porque são almas predilectas de Deus – as ovelhas pelas quais vale a pena deixar todo o rebanho – mas, sobretudo, porque me sinto confirmado na unidade e catolicidade da minha fé eclesial.
Groucho Marx disse que jamais aceitaria fazer parte de um clube que admitisse pessoas como ele. Eu, pelo contrário, nunca poderia pertencer a uma Igreja que não recebesse pecadores como eu.
Observador
Um pregador católico inglês, do século passado, escandalizou os seus fiéis ao dizer que era mais provável que a alguém lhe roubassem a carteira numa igreja católica do que num templo anglicano. Inquirido sobre a sua falta de fé na honestidade dos irmãos da sua própria Igreja, esclareceu que, enquanto a Igreja anglicana é só para pessoas respeitáveis, a romana, precisamente porque é católica, ou seja universal, é para todo o tipo de pessoas, ladrões incluídos.
Alguns fiéis aceitam mal esta abertura, que consideram permissiva em demasia. E, por isso, em tempos de crise generalizada da fé e dos bons costumes, optam por se isolarem em pequenos grupos, evitando o pecaminoso contágio e afastando-se dos outros fiéis, não tão exemplares na ortodoxia ou na virtude. Em nome de uma Igreja dos puros, estes novos cátaros fazem da sua intransigência doutrinal o imperativo principal da sua fé, excluindo os pecadores do seu seio e excluindo-se da unidade eclesial. Esquecem, assim, o amor universal de Cristo, que não só conviveu com pecadores públicos, incorrendo no escândalo dos fariseus do seu tempo, como disse também que as mulheres de má-vida os iriam preceder no reino dos Céus (Mt 21, 31). E não relevam que Jesus, como a propósito de Judas Iscariotes fez notar Santo Agostinho, «aguentou um ‘demónio’ entre os seus discípulos até à sua Paixão (Jo 6,70)» (A fé e as obras, 3-5).
Não são só certos crentes que desejam uma Igreja de eleitos, constituída única e exclusivamente por fiéis exemplares. Também os incrédulos se escandalizam quando vislumbram, dentro dos muros dos templos cristãos, homens e mulheres pecadores, como o carteirista do sermão. Quereriam, eles também, uma Igreja sem mancha nem pecado, feita de anjos e não por homens, uma Jerusalém celestial que nada tivesse que ver com as fraquezas deste mundo.
Tanto uns como outros erram, porque se a Igreja é santa na sua origem e finalidade, é e será sempre pecadora nos seus membros terrenos. Assim o disse Cristo quando ensinou que o trigo e o joio devem permanecer juntos até à ceifa final (cf. Mt 13, 29), ou quando comparou o reino dos Céus a uma grande rede de arrasto, que traz consigo todo o tipo de peixes, bons e maus (Mt 13, 47-52). A Igreja de Cristo não está chamada a ser um luxuoso condomínio fechado, para exclusivo uso de umas quantas almas selectas, mas um pobre hospital de campanha, sempre de portas escancaradas para os seus filhos pecadores e para todos os homens de boa vontade. Os odores de santidade são para o outro mundo porque neste, mais do que as boas obras dos virtuosos, é a pestilência das doenças físicas e morais dos arrependidos o incenso com que Deus quer ser glorificado nos seus templos. Ele não veio ao mundo para os sãos, mas para os enfermos (Mc 2, 17) e é maior a sua alegria por um pecador que se converta, do que por noventa e nove justos que perseverem no bem (Lc 15, 1-7).
Vale mais a unidade da Igreja e a sua solidariedade com os pecadores do que esse rigorismo doutrinal, contrário à caridade apostólica. A tentação dos falsos purismos exclusivistas e sectários não é só de agora, porque também Santo Agostinho denunciou, no seu tempo, as «pessoas que só tomam em consideração os preceitos rigorosos, que mandam reprimir os que causam perturbação, que ordenam (…) que se ‘tratem como aos publicanos’ aqueles que desprezam a Igreja, que se repudiem do seu corpo os membros escandalosos (Mt 7,6; 18,17; 5,30)» (id.). Era também este santo doutor quem assim vituperava, energicamente, contra esses falsos pastores: «o seu zelo intempestivo causa muita tribulação à Igreja, porque desejariam arrancar o joio antes do tempo e a sua cegueira faz deles próprios inimigos da unidade de Jesus Cristo» (id.).
O bem da comunhão deve prevalecer sobre qualquer outro bem, porque a caridade é o mandamento novo de Cristo (Jo 13, 34-35), a principal das virtudes cristãs (1Cor 13, 13) e a razão da esperança na salvação de todos os homens, sem excepção. «Tomemos cuidado em não deixarmos entrar no nosso coração pensamentos presunçosos – adverte o santo bispo de Hipona – em não procurarmos destacar-nos dos pecadores, para não nos sujarmos com o seu contacto, em não tentarmos formar como que um rebanho de discípulos puros e santos. Sob o pretexto de não frequentarmos os maus, conseguiríamos apenas romper a unidade» (id.).
Há quem se escandalize por encontrar, na Igreja católica, pessoas cristãs que têm dúvidas de fé, ou que atentaram contra a vida dos seus filhos por nascer, ou que esmoreceram na esperança, ou que vivem em uniões não abençoadas pela Igreja, ou que não conseguem ainda amar e perdoar o próximo, ou que seguem tendências contrárias ao uso natural do corpo, ou que são alcoólicas, ou drogadas. Confesso que rejubilo com essas benditas presenças, em que abunda o pecado e sobreabunda a esperança, não só porque são almas predilectas de Deus – as ovelhas pelas quais vale a pena deixar todo o rebanho – mas, sobretudo, porque me sinto confirmado na unidade e catolicidade da minha fé eclesial.
Groucho Marx disse que jamais aceitaria fazer parte de um clube que admitisse pessoas como ele. Eu, pelo contrário, nunca poderia pertencer a uma Igreja que não recebesse pecadores como eu.
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Padre Gonçalo Portocarrero de Almada
2014-09-01
Combater a desigualdade ou a pobreza?
JOÃO CARLOS ESPADA - Público - 25/08/2014
Na presente série de "leituras em férias", o livro de hoje é um best-seller da Amazon: Capital in the Twenty-First Century, do francês Thomas Piketty. São 685 páginas, densamente povoadas por gráficos e uma cerrada argumentação sobre o crescimento das desigualdades no ocidente desde a década de 1970.
A obra tem gerado abundante controvérsia, incluindo um editorial (crítico) e chamada de primeira página em The Economist, vários artigos (contra e a favor) no Financial Times. Para um modesto estudioso de teoria política, todos estes assuntos são motivo de admiração — a prudente distância. A obra é certamente admirável, pelo volume de evidência empírica que mobiliza. No entanto, receio ter de confessar que não estou seguro de ter compreendido o simples problema de partida que ele se propõe tratar: a magna questão da desigualdade.
Basicamente, é-nos dito que as desigualdades estão a aumentar no Ocidente e que estas devem ser corrigidas, sobretudo através de fortes impostos "globais" sobre os rendimentos do capital. Mas não é explicado por que motivo é a desigualdade um problema, nem por que motivo a igualdade (e que tipo de igualdade) seria preferível à desigualdade. (Há umas vagas e insistentes referências a "desigualdades democráticas", fundadas no mérito, e "não democráticas", fundadas em "rendas"). Por outras palavras, o livro parte de um dogma, que pode ser inteiramente acertado: o dogma de que a desigualdade é má. Mas não explica por que razão devemos aceitar esse dogma.
Este dogma é apresentado como auto-evidente. Tão auto-evidente que as grandes controvérsias económicas ter-se-iam centrado nele. O autor recorda duas perspectivas rivais: o pessimismo de Marx, que previa uma inevitável bipolarização entre ricos e pobres; e o optimismo de Kuznets, que previa uma natural redução das desigualdades através das forças de mercado. Diz que nenhum tinha razão, embora Marx pareça ter estado mais perto de Piketty.
Com o devido respeito, deve ser recordado que a discussão sobre a desigualdade não se resume ao confronto entre previsões sobre a sua provável evolução. Existe uma vasta tradição de reflexão crítica sobre o dogma de que a desigualdade de resultados é intrinsecamente condenável — e ela está ausente neste livro.
Em rigor, esse dogma é dificilmente sustentável — se for aceite o princípio da igual liberdade perante a lei (o que significa, entre outras coisas, ausência de protecção política discricionária a rendas de situação). Indivíduos igualmente livres vão poder agir diferentemente. Dessas diferentes acções, resultarão diferentes resultados. Logo, da liberdade igual perante a lei — um princípio crucial do Estado de direito — resulta a desigualdade de resultados.
Isto significa que uma presunção da liberdade implica uma presunção da desigualdade. Em alternativa, uma presunção da igualdade (como obviamente é a preferência de Thomas Piketty) implica uma negação da presunção da liberdade. É certamente possível negar a presunção da liberdade — mas é preciso dizê-lo abertamente, além de o justificar, o que não é o caso neste livro.
Na verdade, é possível argumentar que o imperativo moral prioritário reside no combate à pobreza, não no combate à desigualdade, e na criação de redes de segurança para todos, abaixo das quais ninguém deve recear cair. Muitos autores têm mesmo argumentado que os dois não são compatíveis: ou se combate a pobreza e se reforçam redes de segurança para todos, ou se combate a desigualdade — mas, neste último caso, a pobreza aumentará. Entre muitos autores, David Hume foi talvez quem captou esta escolha de forma mais cortante:
"Por mais igual que se torne a distribuição da riqueza, os diferentes graus de arte, interesse e indústria dos homens destruirão imediatamente essa igualdade. Ou, se controlarmos essas virtudes, reduziremos a sociedade à mais extrema indigência; e, em vez de evitarmos a necessidade e a penúria em alguns indivíduos, torná-las-emos inevitáveis para toda a comunidade. Será necessária também a mais rigorosa inquirição para detectar todas as desigualdades assim que elas surjam, bem como a mais severa jurisdição para as punir e corrigir" (An Enquiry Concerning the Principles of Morals, 1777).
Julgo que o (a mais do que um título) saudoso Ronald Reagan teria gostado deste livro de Piketty. Ele ilustra, com muito "mérito democrático", a visão política que Reagan sempre criticou: "If it moves, tax it. If it keeps moving, regulate it. And if it stops moving, subsidize it."
Na presente série de "leituras em férias", o livro de hoje é um best-seller da Amazon: Capital in the Twenty-First Century, do francês Thomas Piketty. São 685 páginas, densamente povoadas por gráficos e uma cerrada argumentação sobre o crescimento das desigualdades no ocidente desde a década de 1970.
A obra tem gerado abundante controvérsia, incluindo um editorial (crítico) e chamada de primeira página em The Economist, vários artigos (contra e a favor) no Financial Times. Para um modesto estudioso de teoria política, todos estes assuntos são motivo de admiração — a prudente distância. A obra é certamente admirável, pelo volume de evidência empírica que mobiliza. No entanto, receio ter de confessar que não estou seguro de ter compreendido o simples problema de partida que ele se propõe tratar: a magna questão da desigualdade.
Basicamente, é-nos dito que as desigualdades estão a aumentar no Ocidente e que estas devem ser corrigidas, sobretudo através de fortes impostos "globais" sobre os rendimentos do capital. Mas não é explicado por que motivo é a desigualdade um problema, nem por que motivo a igualdade (e que tipo de igualdade) seria preferível à desigualdade. (Há umas vagas e insistentes referências a "desigualdades democráticas", fundadas no mérito, e "não democráticas", fundadas em "rendas"). Por outras palavras, o livro parte de um dogma, que pode ser inteiramente acertado: o dogma de que a desigualdade é má. Mas não explica por que razão devemos aceitar esse dogma.
Este dogma é apresentado como auto-evidente. Tão auto-evidente que as grandes controvérsias económicas ter-se-iam centrado nele. O autor recorda duas perspectivas rivais: o pessimismo de Marx, que previa uma inevitável bipolarização entre ricos e pobres; e o optimismo de Kuznets, que previa uma natural redução das desigualdades através das forças de mercado. Diz que nenhum tinha razão, embora Marx pareça ter estado mais perto de Piketty.
Com o devido respeito, deve ser recordado que a discussão sobre a desigualdade não se resume ao confronto entre previsões sobre a sua provável evolução. Existe uma vasta tradição de reflexão crítica sobre o dogma de que a desigualdade de resultados é intrinsecamente condenável — e ela está ausente neste livro.
Em rigor, esse dogma é dificilmente sustentável — se for aceite o princípio da igual liberdade perante a lei (o que significa, entre outras coisas, ausência de protecção política discricionária a rendas de situação). Indivíduos igualmente livres vão poder agir diferentemente. Dessas diferentes acções, resultarão diferentes resultados. Logo, da liberdade igual perante a lei — um princípio crucial do Estado de direito — resulta a desigualdade de resultados.
Isto significa que uma presunção da liberdade implica uma presunção da desigualdade. Em alternativa, uma presunção da igualdade (como obviamente é a preferência de Thomas Piketty) implica uma negação da presunção da liberdade. É certamente possível negar a presunção da liberdade — mas é preciso dizê-lo abertamente, além de o justificar, o que não é o caso neste livro.
Na verdade, é possível argumentar que o imperativo moral prioritário reside no combate à pobreza, não no combate à desigualdade, e na criação de redes de segurança para todos, abaixo das quais ninguém deve recear cair. Muitos autores têm mesmo argumentado que os dois não são compatíveis: ou se combate a pobreza e se reforçam redes de segurança para todos, ou se combate a desigualdade — mas, neste último caso, a pobreza aumentará. Entre muitos autores, David Hume foi talvez quem captou esta escolha de forma mais cortante:
"Por mais igual que se torne a distribuição da riqueza, os diferentes graus de arte, interesse e indústria dos homens destruirão imediatamente essa igualdade. Ou, se controlarmos essas virtudes, reduziremos a sociedade à mais extrema indigência; e, em vez de evitarmos a necessidade e a penúria em alguns indivíduos, torná-las-emos inevitáveis para toda a comunidade. Será necessária também a mais rigorosa inquirição para detectar todas as desigualdades assim que elas surjam, bem como a mais severa jurisdição para as punir e corrigir" (An Enquiry Concerning the Principles of Morals, 1777).
Julgo que o (a mais do que um título) saudoso Ronald Reagan teria gostado deste livro de Piketty. Ele ilustra, com muito "mérito democrático", a visão política que Reagan sempre criticou: "If it moves, tax it. If it keeps moving, regulate it. And if it stops moving, subsidize it."
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João Carlos Espada,
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política
2014-08-26
Obrigado Pe Ruy
ORAÇÃO COLECTA
Senhor Deus, que unis os corações dos fiéis num único desejo, fazei que o vosso povo ame o que mandais e espere o que prometeis,
para que, no meio da instabilidade deste mundo, fixemos os nossos corações onde se encontram as verdadeiras alegrias.
Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.
Senhor Deus, que unis os corações dos fiéis num único desejo, fazei que o vosso povo ame o que mandais e espere o que prometeis,
para que, no meio da instabilidade deste mundo, fixemos os nossos corações onde se encontram as verdadeiras alegrias.
Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.
2014-08-25
A minha família é a minha casa
José Luís Nunes Martins ionline 2014.08.18
Numa família há afeto e exemplo, há limites e respeito, há quem nos aceite como somos sem deixar de nos animar a sermos melhores, sem excessos mas com a paciência de quem ama
A solidão absoluta é não ter ninguém a quem dizer um simples: "tenho vontade de chorar". Não precisamos de muito para viver bem – para ser feliz basta uma família e pouco mais.
A família é a casa e a paz. O refúgio onde uma vontade de chorar não é motivo de julgamento, apenas e só uma necessidade súbita de... família. De um equilíbrio para o qual o outro é essencial... assim também se passa com a vontade de sorrir que, em família, se contagia apenas pelo olhar.
Nos dias de hoje vai sendo cada vez mais difícil encontrar gente capaz de ser família. Os egoísmos abundam e cultiva-se, sozinho, o individual. Como se não houvesse espaço para o amor. Dizem que amar é arriscado, que é coisa de loucos...
Todos temos sentimentos mais profundos. Cada um de nós é uma unidade, mas o que somos passa por sermos mais do que um. Parte de unidades maiores. Estamos com quem amamos e quem amamos também está, de alguma forma, connosco. O amor é o que existe entre nós e nos enlaça os sentimentos mais profundos. Onde uma vontade de chorar é um sinal de que há algo em mim que é maior do que eu... por vezes, nem preciso de chorar.... apenas a vontade me indica o caminho da humildade e do amor. Sozinho não consigo chegar a ser eu...
Uma verdadeira família é simples. É o lugar onde todos amam e protegem a intimidade de cada um. Ninguém é de uma família à qual não se entrega. Mas não é fácil, nunca. É preciso ser forte o suficiente para dizer não a um conjunto enorme de coisas que parecem muito valiosas, mas que não passam de ocas aparências de valor.
Há muita gente que gosta de complicar para fugir ao que é simples. Para que me serve um palácio se nele a minha solidão se faz ainda maior? Quantos desistem de lutar pelo amor com a desculpa de que o preço é alto e o prémio pode afinal não valer o esforço? Quantas vezes a falta de amor é vista como paz?
A família é algo simples – puro – mas muitíssimo difícil de alcançar. Implica a renúncia constante aos artifícios do fácil e do imediato. Exige que nos concentremos num caminho longo que acreditamos (sem grandes provas) que é o único que nos pode elevar e levar ao céu.
Numa família há afeto e exemplo, há limites e respeito, há quem nos aceite como somos sem deixar de nos animar a sermos melhores, sem excessos mas com a paciência de quem ama.
A paz resulta de um equilíbrio de elementos diferentes, com talentos e perspetivas distintos. Não através de um esforço de anulação do que é único de cada um, mas precisamente pela riqueza de o orientar rumo a um fim conjunto e harmonioso. Uma espécie de enriquecimento recíproco dos contrários. Promover o bem do outro não é fazer com que se torne semelhante a mim.
A minha casa é o lugar onde eu sou o outro a quem alguém pode expressar o seu "tenho vontade de chorar" sem que eu trace juízos de qualquer espécie, e que lhe faça sentir com o meu silêncio, dedicação e presença que a sua vontade já não é só sua... mas minha também.
A minha família é a minha casa. Até podemos ser apenas dois... mas é aí, e só aí, que posso ser feliz. Longe de casa estou sempre a caminho. O meu coração não descansa senão nos braços de quem tem vontade de sorrir e de chorar comigo.
Numa família há afeto e exemplo, há limites e respeito, há quem nos aceite como somos sem deixar de nos animar a sermos melhores, sem excessos mas com a paciência de quem ama
A solidão absoluta é não ter ninguém a quem dizer um simples: "tenho vontade de chorar". Não precisamos de muito para viver bem – para ser feliz basta uma família e pouco mais.
A família é a casa e a paz. O refúgio onde uma vontade de chorar não é motivo de julgamento, apenas e só uma necessidade súbita de... família. De um equilíbrio para o qual o outro é essencial... assim também se passa com a vontade de sorrir que, em família, se contagia apenas pelo olhar.
Nos dias de hoje vai sendo cada vez mais difícil encontrar gente capaz de ser família. Os egoísmos abundam e cultiva-se, sozinho, o individual. Como se não houvesse espaço para o amor. Dizem que amar é arriscado, que é coisa de loucos...
Todos temos sentimentos mais profundos. Cada um de nós é uma unidade, mas o que somos passa por sermos mais do que um. Parte de unidades maiores. Estamos com quem amamos e quem amamos também está, de alguma forma, connosco. O amor é o que existe entre nós e nos enlaça os sentimentos mais profundos. Onde uma vontade de chorar é um sinal de que há algo em mim que é maior do que eu... por vezes, nem preciso de chorar.... apenas a vontade me indica o caminho da humildade e do amor. Sozinho não consigo chegar a ser eu...
Uma verdadeira família é simples. É o lugar onde todos amam e protegem a intimidade de cada um. Ninguém é de uma família à qual não se entrega. Mas não é fácil, nunca. É preciso ser forte o suficiente para dizer não a um conjunto enorme de coisas que parecem muito valiosas, mas que não passam de ocas aparências de valor.
Há muita gente que gosta de complicar para fugir ao que é simples. Para que me serve um palácio se nele a minha solidão se faz ainda maior? Quantos desistem de lutar pelo amor com a desculpa de que o preço é alto e o prémio pode afinal não valer o esforço? Quantas vezes a falta de amor é vista como paz?
A família é algo simples – puro – mas muitíssimo difícil de alcançar. Implica a renúncia constante aos artifícios do fácil e do imediato. Exige que nos concentremos num caminho longo que acreditamos (sem grandes provas) que é o único que nos pode elevar e levar ao céu.
Numa família há afeto e exemplo, há limites e respeito, há quem nos aceite como somos sem deixar de nos animar a sermos melhores, sem excessos mas com a paciência de quem ama.
A paz resulta de um equilíbrio de elementos diferentes, com talentos e perspetivas distintos. Não através de um esforço de anulação do que é único de cada um, mas precisamente pela riqueza de o orientar rumo a um fim conjunto e harmonioso. Uma espécie de enriquecimento recíproco dos contrários. Promover o bem do outro não é fazer com que se torne semelhante a mim.
A minha casa é o lugar onde eu sou o outro a quem alguém pode expressar o seu "tenho vontade de chorar" sem que eu trace juízos de qualquer espécie, e que lhe faça sentir com o meu silêncio, dedicação e presença que a sua vontade já não é só sua... mas minha também.
A minha família é a minha casa. Até podemos ser apenas dois... mas é aí, e só aí, que posso ser feliz. Longe de casa estou sempre a caminho. O meu coração não descansa senão nos braços de quem tem vontade de sorrir e de chorar comigo.
2014-08-23
O beicinho
Inês Teotónio Pereira ionline 2014.08.16
O beicinho do meu filho
Quando me zango com o meu filho mais novo ele faz beicinho na esperança de eu me comover; caso eu não me comova e mantenha o sobrolho carregado, ele exibe o seu melhor sorriso na esperança de eu me derreter. Resulta quase sempre e é raro ele precisar de recorrer ao sorriso. O meu filho mais novo tem um ano. A criatura ainda não sabe andar, não fala, nem sequer sabe comer sozinha, mas já é perita em técnicas de simulação e de charme que supostamente requerem muito mais inteligência e esforço mental do que dormir sem chucha. É verdade que ele ainda não me engana redondamente e que todas as vezes que me comovi ou me derreti com o seu beicinho ou sorriso - 97% das vezes, mais ou menos - cedi perfeitamente consciente da minha cedência. E é assim, de cedência em cedência, que a criança vai ficando cada dia mais mimada, mais manipuladora e, claro, insuportavelmente encantadora. Conscientemente mimada. O meu filho percebeu ao fim de 12 meses de existência que a sua vida se pode tornar bastante mais agradável se dominar as referidas técnicas de manipulação. Ele sabe enganar-me e sabe que eu me derreto com as estratégias de engano. Este simples episódio doméstico revela duas evidências: a primeira é que nós pais somos presas fáceis, a segunda é que os nossos filhos são uns manipuladores impiedosos. O pior é que se isto é assim com um ano - repito: ele ainda não sabe falar nem andar - como será quando ele tiver 16?
Nós pais vivemos enganados e somos diariamente enganados pelos nossos filhos. Aldrabados, mesmo. Vivemos enganados porque achamos que os conhecemos melhor que a palma da nossa mão e controlamos na perfeição as suas técnicas de manipulação. Achamos que somos os verdadeiros donos disto tudo e que não há ninguém que nos consiga passar a perna. Estamos convencidos que em nossa casa só nós é que passamos a perna aos nossos filhos, nunca o contrário. Acreditamos ingenuamente que o controlo emocional é nosso. Já a criançada, que desde tenra idade domina as técnicas mais desprezíveis de manipulação, vai-nos dando corda para nos enforcarmos ao mesmo tempo que vai conquistando a nossa cega e inabalável confiança. Eles tornam-se geniais na chantagem emocional, peritos em carregar-nos com o peso dos remorsos e exímios simuladores de personalidades diversas. Nós, pais, vamos facilmente nas cantigas. Até porque gostamos da melodia. E a cantiga dos nossos filhos é como os cigarros: começa por ser só um por semana mas quando damos por nós já estamos a comprar maços diariamente. A cantiga dos filhos também começa apenas com um beicinho mas acaba com a cantiga do bandido segundo a qual a professora é que é má e não sabe ensinar e os amigos é que são os irresponsáveis. E nós pais acreditamos em tudo. Queremos e gostamos de acreditar. Não vivemos sem o beicinho enganador e gostamos de ser convencidos pelos nossos filhos de que eles são bons rebeldes, gente de bem e palavra, valentes e virtuosos, crianças sensíveis e incapazes de matar uma mosca por mal. Gostamos que eles nos convençam que são aquilo que queremos que sejam. E eles sabem qual é o guião. Desde que nasceram que sabem qual é guião. E sabem perfeitamente que se o cumprirem à risca melhor para eles e para nós. Mas não há nada mais maravilhoso que este engano. A nossa ingenuidade, a nossa inabalável confiança, a nossa fé nos metralhas dos nossos filhos é aquilo que nos torna melhores pessoas e a eles melhores filhos. Para nós os defeitos dos nossos filhos são meros acidentes perfeitamente insignificantes e todos eles justificáveis. Aliás, nem são bem defeitos, são características. É por pensarem assim que os pais são as melhores pessoas do mundo: os pais acreditam sempre nos filhos. Sempre. Somos pessoas de uma fé inabalável nas crias. Mesmo que saibamos que estamos completamente enganados. É que estar enganado neste caso é um pormenor: o que verdadeiramente interessa é o beicinho. A maravilha do beicinho e do sorriso encantador. O resto são detalhes mesquinhos.
O beicinho do meu filho
Quando me zango com o meu filho mais novo ele faz beicinho na esperança de eu me comover; caso eu não me comova e mantenha o sobrolho carregado, ele exibe o seu melhor sorriso na esperança de eu me derreter. Resulta quase sempre e é raro ele precisar de recorrer ao sorriso. O meu filho mais novo tem um ano. A criatura ainda não sabe andar, não fala, nem sequer sabe comer sozinha, mas já é perita em técnicas de simulação e de charme que supostamente requerem muito mais inteligência e esforço mental do que dormir sem chucha. É verdade que ele ainda não me engana redondamente e que todas as vezes que me comovi ou me derreti com o seu beicinho ou sorriso - 97% das vezes, mais ou menos - cedi perfeitamente consciente da minha cedência. E é assim, de cedência em cedência, que a criança vai ficando cada dia mais mimada, mais manipuladora e, claro, insuportavelmente encantadora. Conscientemente mimada. O meu filho percebeu ao fim de 12 meses de existência que a sua vida se pode tornar bastante mais agradável se dominar as referidas técnicas de manipulação. Ele sabe enganar-me e sabe que eu me derreto com as estratégias de engano. Este simples episódio doméstico revela duas evidências: a primeira é que nós pais somos presas fáceis, a segunda é que os nossos filhos são uns manipuladores impiedosos. O pior é que se isto é assim com um ano - repito: ele ainda não sabe falar nem andar - como será quando ele tiver 16?
Nós pais vivemos enganados e somos diariamente enganados pelos nossos filhos. Aldrabados, mesmo. Vivemos enganados porque achamos que os conhecemos melhor que a palma da nossa mão e controlamos na perfeição as suas técnicas de manipulação. Achamos que somos os verdadeiros donos disto tudo e que não há ninguém que nos consiga passar a perna. Estamos convencidos que em nossa casa só nós é que passamos a perna aos nossos filhos, nunca o contrário. Acreditamos ingenuamente que o controlo emocional é nosso. Já a criançada, que desde tenra idade domina as técnicas mais desprezíveis de manipulação, vai-nos dando corda para nos enforcarmos ao mesmo tempo que vai conquistando a nossa cega e inabalável confiança. Eles tornam-se geniais na chantagem emocional, peritos em carregar-nos com o peso dos remorsos e exímios simuladores de personalidades diversas. Nós, pais, vamos facilmente nas cantigas. Até porque gostamos da melodia. E a cantiga dos nossos filhos é como os cigarros: começa por ser só um por semana mas quando damos por nós já estamos a comprar maços diariamente. A cantiga dos filhos também começa apenas com um beicinho mas acaba com a cantiga do bandido segundo a qual a professora é que é má e não sabe ensinar e os amigos é que são os irresponsáveis. E nós pais acreditamos em tudo. Queremos e gostamos de acreditar. Não vivemos sem o beicinho enganador e gostamos de ser convencidos pelos nossos filhos de que eles são bons rebeldes, gente de bem e palavra, valentes e virtuosos, crianças sensíveis e incapazes de matar uma mosca por mal. Gostamos que eles nos convençam que são aquilo que queremos que sejam. E eles sabem qual é o guião. Desde que nasceram que sabem qual é guião. E sabem perfeitamente que se o cumprirem à risca melhor para eles e para nós. Mas não há nada mais maravilhoso que este engano. A nossa ingenuidade, a nossa inabalável confiança, a nossa fé nos metralhas dos nossos filhos é aquilo que nos torna melhores pessoas e a eles melhores filhos. Para nós os defeitos dos nossos filhos são meros acidentes perfeitamente insignificantes e todos eles justificáveis. Aliás, nem são bem defeitos, são características. É por pensarem assim que os pais são as melhores pessoas do mundo: os pais acreditam sempre nos filhos. Sempre. Somos pessoas de uma fé inabalável nas crias. Mesmo que saibamos que estamos completamente enganados. É que estar enganado neste caso é um pormenor: o que verdadeiramente interessa é o beicinho. A maravilha do beicinho e do sorriso encantador. O resto são detalhes mesquinhos.
2014-08-21
Robin Williams, a noite e o riso
JOÃO MIGUEL TAVARES Público, 14/08/2014
Robin Williams era o tipo que se estava sempre a rir, e nós não podemos esperar do tipo que se está sempre a rir, do homem mais bem-disposto da sala, da máquina de produzir gargalhadas, do humorista destravado, excessivo e imparável, que pegue num cinto para se enforcar, aos 63 anos de idade. Ele não. Ele era o tipo divertido.
Infelizmente, a distracção é nossa: não há qualquer relação entre o riso e a felicidade. Ou se há, é uma relação contrária à que se poderia esperar. O humor é uma arma para enfrentar o absurdo da vida e uma das mais elevadas provas da nossa inteligência. O riso é a nossa defesa contra a consciência da finitude e o instrumento privilegiado para espantar a morte; é, digamos assim, o paliativo que Deus encontrou para que conseguíssemos enfrentar o mais abstruso dos dilemas da criação: "Terás em simultâneo a consciência da morte e o desejo de imortalidade. Vai ser terrível. Mas Eu vou deixar que te rias disso."
E nós rimos, claro. E o riso ajuda-nos a suportar dores, tristezas, melancolias. Mas o bom humorista não tem a mesma sorte - ele está demasiado perto da matéria que queima, vê com demasiada clareza o absurdo da vida. É por isso que nos faz rir: tem um acesso privilegiado ao código do mundo, aponta o dedo à mecânica silenciosa do quotidiano e desmonta as suas peças, a sua arte consiste em chamar a atenção para um certo tipo de óbvio (tiques, truques, hábitos, rituais) que nós não vislumbramos. Todo o grande humorista tem um acréscimo de lucidez. E esse excesso de lucidez empurra-o, com assustadora frequência, para os braços da tristeza e da depressão. Demasiado lúcido para ser feliz.
Repare-se na biografia habitual dos grandes humoristas: filhos únicos, caixas de óculos, miúdos privilegiados mas solitários, pouco sociáveis, gordos, onanistas, nerds, tipos que na adolescência só se conseguem integrar através do humor - o riso é o cavalo de Tróia que lhes permite entrar no mundo. Reparem também como praticamente não há homens (nem mulheres) bonitos no humor. Robin Williams não era bonito, tal como não o são Jim Carrey, Jerry Seinfeld, Louis CK, John Cleese, Bill Murray, Seth Rogen, Tina Fey, Sarah Silverman. A lista é infindável. Para se ser alguém na vida, pode ser de uma certa utilidade ficar fechado em casa na adolescência, sem acesso a festas, nem a miúdas. E essa solidão, esse rasto de clausura, muitas vezes fica lá, e nem Hollywood, nem uma família - ou três casamentos, no caso de Robin Williams - conseguem apagar.
Não há nada de relevante que possamos escrever sobre alguém que se mata - mas ficar em silêncio parece-me cumplicidade com a morte. Eu sou da geração Clube dos Poetas Mortos, filme que nunca me atrevi a rever, porque tenho a certeza de que é muito pior do que a memória que guardo dele. E é impossível ser dessa geração sem ficar profundamente tocado com o suicídio de Robin Williams. Ele foi um extraordinário actor sem nunca ter feito um extraordinário filme, mas para mim será sempre o professor que levou os alunos a subirem para as mesas, que me apresentou Leaves of Grass, e me ensinou o significado das palavras "carpe diem". O capitão, como no poema de Whitman, jaz agora morto, mas ao contrário do poema de Whitman, não houve gesta heróica, nem há razões para celebrar. Robin Williams mentiu: aproveitar apenas o dia não chega. Precisamos todos de alguma coisa que nos sustenha, quando o dia acaba e o riso não sai.
Robin Williams era o tipo que se estava sempre a rir, e nós não podemos esperar do tipo que se está sempre a rir, do homem mais bem-disposto da sala, da máquina de produzir gargalhadas, do humorista destravado, excessivo e imparável, que pegue num cinto para se enforcar, aos 63 anos de idade. Ele não. Ele era o tipo divertido.
Infelizmente, a distracção é nossa: não há qualquer relação entre o riso e a felicidade. Ou se há, é uma relação contrária à que se poderia esperar. O humor é uma arma para enfrentar o absurdo da vida e uma das mais elevadas provas da nossa inteligência. O riso é a nossa defesa contra a consciência da finitude e o instrumento privilegiado para espantar a morte; é, digamos assim, o paliativo que Deus encontrou para que conseguíssemos enfrentar o mais abstruso dos dilemas da criação: "Terás em simultâneo a consciência da morte e o desejo de imortalidade. Vai ser terrível. Mas Eu vou deixar que te rias disso."
E nós rimos, claro. E o riso ajuda-nos a suportar dores, tristezas, melancolias. Mas o bom humorista não tem a mesma sorte - ele está demasiado perto da matéria que queima, vê com demasiada clareza o absurdo da vida. É por isso que nos faz rir: tem um acesso privilegiado ao código do mundo, aponta o dedo à mecânica silenciosa do quotidiano e desmonta as suas peças, a sua arte consiste em chamar a atenção para um certo tipo de óbvio (tiques, truques, hábitos, rituais) que nós não vislumbramos. Todo o grande humorista tem um acréscimo de lucidez. E esse excesso de lucidez empurra-o, com assustadora frequência, para os braços da tristeza e da depressão. Demasiado lúcido para ser feliz.
Repare-se na biografia habitual dos grandes humoristas: filhos únicos, caixas de óculos, miúdos privilegiados mas solitários, pouco sociáveis, gordos, onanistas, nerds, tipos que na adolescência só se conseguem integrar através do humor - o riso é o cavalo de Tróia que lhes permite entrar no mundo. Reparem também como praticamente não há homens (nem mulheres) bonitos no humor. Robin Williams não era bonito, tal como não o são Jim Carrey, Jerry Seinfeld, Louis CK, John Cleese, Bill Murray, Seth Rogen, Tina Fey, Sarah Silverman. A lista é infindável. Para se ser alguém na vida, pode ser de uma certa utilidade ficar fechado em casa na adolescência, sem acesso a festas, nem a miúdas. E essa solidão, esse rasto de clausura, muitas vezes fica lá, e nem Hollywood, nem uma família - ou três casamentos, no caso de Robin Williams - conseguem apagar.
Não há nada de relevante que possamos escrever sobre alguém que se mata - mas ficar em silêncio parece-me cumplicidade com a morte. Eu sou da geração Clube dos Poetas Mortos, filme que nunca me atrevi a rever, porque tenho a certeza de que é muito pior do que a memória que guardo dele. E é impossível ser dessa geração sem ficar profundamente tocado com o suicídio de Robin Williams. Ele foi um extraordinário actor sem nunca ter feito um extraordinário filme, mas para mim será sempre o professor que levou os alunos a subirem para as mesas, que me apresentou Leaves of Grass, e me ensinou o significado das palavras "carpe diem". O capitão, como no poema de Whitman, jaz agora morto, mas ao contrário do poema de Whitman, não houve gesta heróica, nem há razões para celebrar. Robin Williams mentiu: aproveitar apenas o dia não chega. Precisamos todos de alguma coisa que nos sustenha, quando o dia acaba e o riso não sai.
2014-08-19
Minorias Menores: os cristãos do Médio Oriente
PAULO RANGEL, Público, 12/08/2014
Por vezes, algum prurido ou "pseudo-prurido" ocidental faz com que se faça uma grande apologia da liberdade religiosa e da defesa das minorias, mas se enfileire por uma atitude passiva quando está em causa a religião dominante no Ocidente.
1. As operações militares que os Estados Unidos iniciaram no Iraque, com cooperação francesa e britânica, e a acção de ajuda humanitária a centenas de milhares de refugiados mostram bem a instabilidade e a gravidade do momento internacional que vivemos.
Especialmente se pensarmos que este desenvolvimento decorre a par da terrível situação em Gaza, da persistência do impasse na Síria, do adensar das interrogações na Ucrânia, da emissão do alerta de saúde global a propósito do vírus Ébola. A actual situação no Iraque e a necessidade de intervenção externa merece uma análise cuidada e uma reflexão profunda, que hoje não vou nem quero fazer aqui.
2. Hoje quero pôr em destaque, chamemos-lhe assim por ironia, um "dano colateral" das mudanças que estão a ocorrer no Médio Oriente e, em especial, no Iraque. Esse "dano colateral" vem a ser a sistemática perseguição aos cristãos iraquianos, que começou imediatamente após a queda de Saddam Hussein. E faço-o, não apenas por aparecerem agora em parangonas, as atrocidades do chamado Exército islâmico do Iraque e do Levante. Mas muito por causa do vibrante apelo do Papa Francisco a este respeito, apelo que ouvi na semana passada transmitido por um sacerdote guineense na Igreja da Trindade no Porto e que acabo de ouvir a um padre de origem mediterrânica na discreta catedral de S.Pedro e S.Paulo em Tallin.
3. É bem sabido que o regime de Saddam Hussein, apesar de ditatorial, senguinário e delirante, mercê da sua filiação numa tradição político-militar laica e ideológica, revelou sempre uma tolerância razoável para com as minorias religiosas. No que, de resto, não se distinguiu da linha prosseguida pela terrível famíla Assad na Síria ou da orientação própria da ditadura militar que regia o Egipto.
A queda de Saddam Hussein e a situação de instabilidade permanente que se lhe seguiu, fosse com a autoridade norte-americana fosse com a instalação da nova governação autóctone, levaram ao início de uma perseguição sistemática à minoria cristã. Estamos a falar de comunidades cristãs numerosas, em alguns casos com uma implantação contínua e ininterrupta que remonta ao nascimento do cristianismo (é o caso das comunidades da Caldeia e de algumas do Egipto). Trata-se de matéria que tenho seguido com interesse, embora intermitentemente, no Parlamento Europeu e, em particular, no âmbito das plataformas de diálogo inter-religioso de há muito estabelecidas no PPE e em que as igrejas cristãs do Médio Oriente e a Igreja Copta do Egipto têm um grande protagonismo.
4. Pois bem, assim que a mudança de poder se iniciou, a situação das famílias cristãs de Bagdade e também de outras regiões passou a ser de risco. Recordo-me de, há cerca de quatro anos, o Patriarca de Bagdade, ao lado de outros bispos iraquianos, ter relatado em Bruxelas que os grupos fundamentalistas muçulmanos tinham inaugurado uma carnificina baseada na prática do terror. Em cada semana, à força da espada e do sabre, matavam uma família de religião cristã na comunidade de Bagdade. Faziam-no com uma regularidade e com uma implacabilidade tais que o pânico se disseminou e um número relevantíssimo de cristãos resolveu abandonar a cidade e o país. Esta prática terrorista, apesar de regular e de altamente eficaz nos seus objectivos perversos, não teve nunca visibilidade na comunidade internacional. Por mais denúncias que os bispos fizessem, poucos queriam ouvir falar de perseguições aos cristãos, por mais que tivessem como bandeira a defesa dos direitos humanos e da tolerância. É certo que, em alguns casos contados, houve alguma repercussão na opinião pública e publicada. Por exemplo, no caso do ataque às igrejas coptas e aos seus membros no Egipto, aquando da turbulência causada pela primavera árabe. Ou, muito recentemente, no impressionante caso do rapto de centenas de raparigas nigerianas. Mas a verdade é que continua a haver um largo silenciamento dos ataques às minorias cristãs
5. É absolutamente fundamental não apagar nem silenciar esta terrível perseguição. Só agora com a denúncia da actuação mais recente do Exército Islâmico do Iraque e do Levante, em que extremistas muçulmanos decretaram a obrigatoriedade da conversão dos cristãos, emitiram um fatwa que confisca todos os seus bens e pertences e lhes assinalaram as casas, para que se saiba que são infiéis, é que começa a haver um movimento consistente de defesa dos direitos desta minoria. Estas práticas, como ainda ontem se viu relativamente a outra minoria religiosa, não andam longe das grandes atrocidades do regime nazi. Ora, por vezes, algum prurido ou "pseudo-prurido" ocidental faz com que se faça uma grande apologia da liberdade religiosa e da defesa das minorias, mas se enfileire por uma atitude passiva quando está em causa a religião dominante no Ocidente.
6. Que fique claro de uma vez por todas: as minorias cristãs também merecem protecção e também precisam de uma voz activa na comunidade internacional. Claro que o pior que poderia acontecer é que essa defesa activa fosse feita por um qualquer sentimento de "cumplicidade religiosa", pois isso, para além de injusto e moralmente inaceitável, conduziria a uma escalada e a uma espiral de vingança e de vinganças. O direito a professar a religião, em liberdade e em tolerância, é independente da concreta fé que cada um professa. Eis um princípio que deve valer para todas as minorias religiosas. Também as cristãs. Também as cristãs, mas não por serem cristãs.
Por vezes, algum prurido ou "pseudo-prurido" ocidental faz com que se faça uma grande apologia da liberdade religiosa e da defesa das minorias, mas se enfileire por uma atitude passiva quando está em causa a religião dominante no Ocidente.
1. As operações militares que os Estados Unidos iniciaram no Iraque, com cooperação francesa e britânica, e a acção de ajuda humanitária a centenas de milhares de refugiados mostram bem a instabilidade e a gravidade do momento internacional que vivemos.
Especialmente se pensarmos que este desenvolvimento decorre a par da terrível situação em Gaza, da persistência do impasse na Síria, do adensar das interrogações na Ucrânia, da emissão do alerta de saúde global a propósito do vírus Ébola. A actual situação no Iraque e a necessidade de intervenção externa merece uma análise cuidada e uma reflexão profunda, que hoje não vou nem quero fazer aqui.
2. Hoje quero pôr em destaque, chamemos-lhe assim por ironia, um "dano colateral" das mudanças que estão a ocorrer no Médio Oriente e, em especial, no Iraque. Esse "dano colateral" vem a ser a sistemática perseguição aos cristãos iraquianos, que começou imediatamente após a queda de Saddam Hussein. E faço-o, não apenas por aparecerem agora em parangonas, as atrocidades do chamado Exército islâmico do Iraque e do Levante. Mas muito por causa do vibrante apelo do Papa Francisco a este respeito, apelo que ouvi na semana passada transmitido por um sacerdote guineense na Igreja da Trindade no Porto e que acabo de ouvir a um padre de origem mediterrânica na discreta catedral de S.Pedro e S.Paulo em Tallin.
3. É bem sabido que o regime de Saddam Hussein, apesar de ditatorial, senguinário e delirante, mercê da sua filiação numa tradição político-militar laica e ideológica, revelou sempre uma tolerância razoável para com as minorias religiosas. No que, de resto, não se distinguiu da linha prosseguida pela terrível famíla Assad na Síria ou da orientação própria da ditadura militar que regia o Egipto.
A queda de Saddam Hussein e a situação de instabilidade permanente que se lhe seguiu, fosse com a autoridade norte-americana fosse com a instalação da nova governação autóctone, levaram ao início de uma perseguição sistemática à minoria cristã. Estamos a falar de comunidades cristãs numerosas, em alguns casos com uma implantação contínua e ininterrupta que remonta ao nascimento do cristianismo (é o caso das comunidades da Caldeia e de algumas do Egipto). Trata-se de matéria que tenho seguido com interesse, embora intermitentemente, no Parlamento Europeu e, em particular, no âmbito das plataformas de diálogo inter-religioso de há muito estabelecidas no PPE e em que as igrejas cristãs do Médio Oriente e a Igreja Copta do Egipto têm um grande protagonismo.
4. Pois bem, assim que a mudança de poder se iniciou, a situação das famílias cristãs de Bagdade e também de outras regiões passou a ser de risco. Recordo-me de, há cerca de quatro anos, o Patriarca de Bagdade, ao lado de outros bispos iraquianos, ter relatado em Bruxelas que os grupos fundamentalistas muçulmanos tinham inaugurado uma carnificina baseada na prática do terror. Em cada semana, à força da espada e do sabre, matavam uma família de religião cristã na comunidade de Bagdade. Faziam-no com uma regularidade e com uma implacabilidade tais que o pânico se disseminou e um número relevantíssimo de cristãos resolveu abandonar a cidade e o país. Esta prática terrorista, apesar de regular e de altamente eficaz nos seus objectivos perversos, não teve nunca visibilidade na comunidade internacional. Por mais denúncias que os bispos fizessem, poucos queriam ouvir falar de perseguições aos cristãos, por mais que tivessem como bandeira a defesa dos direitos humanos e da tolerância. É certo que, em alguns casos contados, houve alguma repercussão na opinião pública e publicada. Por exemplo, no caso do ataque às igrejas coptas e aos seus membros no Egipto, aquando da turbulência causada pela primavera árabe. Ou, muito recentemente, no impressionante caso do rapto de centenas de raparigas nigerianas. Mas a verdade é que continua a haver um largo silenciamento dos ataques às minorias cristãs
5. É absolutamente fundamental não apagar nem silenciar esta terrível perseguição. Só agora com a denúncia da actuação mais recente do Exército Islâmico do Iraque e do Levante, em que extremistas muçulmanos decretaram a obrigatoriedade da conversão dos cristãos, emitiram um fatwa que confisca todos os seus bens e pertences e lhes assinalaram as casas, para que se saiba que são infiéis, é que começa a haver um movimento consistente de defesa dos direitos desta minoria. Estas práticas, como ainda ontem se viu relativamente a outra minoria religiosa, não andam longe das grandes atrocidades do regime nazi. Ora, por vezes, algum prurido ou "pseudo-prurido" ocidental faz com que se faça uma grande apologia da liberdade religiosa e da defesa das minorias, mas se enfileire por uma atitude passiva quando está em causa a religião dominante no Ocidente.
6. Que fique claro de uma vez por todas: as minorias cristãs também merecem protecção e também precisam de uma voz activa na comunidade internacional. Claro que o pior que poderia acontecer é que essa defesa activa fosse feita por um qualquer sentimento de "cumplicidade religiosa", pois isso, para além de injusto e moralmente inaceitável, conduziria a uma escalada e a uma espiral de vingança e de vinganças. O direito a professar a religião, em liberdade e em tolerância, é independente da concreta fé que cada um professa. Eis um princípio que deve valer para todas as minorias religiosas. Também as cristãs. Também as cristãs, mas não por serem cristãs.
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2014-08-18
Redescobrindo o Ocidente
JOÃO CARLOS ESPADA Público, 11/08/2014
Stark afirma que "a modernidade é inteiramente o produto da civilização ocidental."
Depois das sugestões de livros para férias, inicio hoje, previsivelmente até 1 de Setembro, uma série dedicada a leituras em férias.
How the West Won: The Neglected Story of the Triumph of Modernity, de Rodney Stark, (ISI Books, 2014) é o ponto de partida destas leituras estivais. Apesar do título vagamente belicoso, o livro não é sobre a superioridade militar do Ocidente. É sobre a complexa mistura de valores, práticas e instituições que, ao longo dos séculos, distinguiram o Ocidente do resto (The West and the Rest, no título provocatório de um livro de Roger Scruton sobre o mesmo tema).
Há uns quarenta anos, recorda Stark, uma das disciplinas mais importantes nas licenciaturas das melhores universidades americanas chamava-se Western Civilization. Aí se estudavam os grandes livros e as grandes obras de arte da cultura ocidental. Mas as modas "politicamente correctas" ostracizaram essa área de estudo. Diz-se agora que a civilização ocidental é apenas uma entre muitas civilizações e que estudar a nossa seria "etnocêntrico e arrogante."
Isto tem gerado uma ignorância patética sobre o passado. E, com ela, têm crescido as mais divertidas e absurdas teses politicamente correctas. Stark recorda algumas delas: que os gregos copiaram a sua cultura do Egipto; que a ciência europeia teve origem no Islão; que a riqueza ocidental foi roubada às sociedades não ocidentais; que a modernidade ocidental foi realmente criada na China.
Stark não nega que o Ocidente tenha sabiamente adoptado elementos de outras civilizações. Mas afirma, e procura ilustrar ao longo de mais de 400 páginas, que "a modernidade é inteiramente o produto da civilização ocidental." De caminho, Stark procura refutar muitos outros preconceitos actualmente dominantes na nossa cultura política.
"A Idade das Trevas", nunca existiu, argumenta o autor, em defesa do cristianismo medieval. Foi na verdade uma era de notável progresso e inovação, que incluiu a emergência do capitalismo. Também a chamada "revolução científica" do século XVII não foi propriamente uma revolução, no sentido de uma ruptura com o passado. Terá sido basicamente o culminar de um gradual progresso científico cujas raízes remontam às primeiras universidades do século XII — fundadas pelos filósofos escolásticos e protegidas pela Igreja de Roma.
Outro mito que ocupa Stark é o da revolução industrial como produto do desígnio central de governos esclarecidos. Em rigor, quase o contrário pode ter acontecido. A Inglaterra, a Holanda e a liga das cidades hanseáticas lideraram a industrialização porque os direitos de propriedade e o primado da lei sobre a vontade das cortes estava aí solidamente estabelecido. A origem desse primado da lei sobre o poder político deve ser procurada na Magna Carta de 1215 – que no próximo ano de 2015 celebrará a simpática idade de 800 anos. A Inglaterra tinha ainda a vantagem adicional de não ter uma larga corte centralizada em Londres, financiada por impostos. A aristocracia estava dispersa pelo país, nas suas vastas propriedades, de que não era absentista, e por isso procurou rentabilizá-las descentralizadamente, através de inovações e investimento.
A centralização é aliás um dos alvos preferidos de Rodney Stark. Isso leva-o a criticar o Império Romano, que só terá assistido a dois progressos maiores: a invenção do cimento e a emergência do cristianismo, sendo que este último contou com a severa oposição imperial. A queda do Império Romano, argumenta Stark, foi aliás altamente benéfica para a Europa e o Ocidente. Removeu um sistema altamente centralizado e caro, fundado em impostos altos, e deu lugar a uma vasta pluralidade de centros de decisão que concorriam entre si e que tinham de gerar auto-sustento.
A lista de observações politicamente incorrectas é interminável. O livro está escrito num tom algo panfletário, por vezes bastante divertido, mas não é um simples panfleto. Stark mobiliza uma vastíssima bibliografia académica. Basicamente, articula num único livro o que muitos autores vêm dizendo em áreas mais especializadas. Vale a pena citar as suas palavras de conclusão:
"Sem dúvida que a modernidade ocidental tem as suas limitações e os seus descontentes. Ainda assim, é de longe melhor do que as alternativas – não só, nem primariamente, devido à sua tecnologia avançada, mas devido ao seu comprometimento fundamental com a liberdade, a razão e a dignidade humana".
Stark afirma que "a modernidade é inteiramente o produto da civilização ocidental."
Depois das sugestões de livros para férias, inicio hoje, previsivelmente até 1 de Setembro, uma série dedicada a leituras em férias.
How the West Won: The Neglected Story of the Triumph of Modernity, de Rodney Stark, (ISI Books, 2014) é o ponto de partida destas leituras estivais. Apesar do título vagamente belicoso, o livro não é sobre a superioridade militar do Ocidente. É sobre a complexa mistura de valores, práticas e instituições que, ao longo dos séculos, distinguiram o Ocidente do resto (The West and the Rest, no título provocatório de um livro de Roger Scruton sobre o mesmo tema).
Há uns quarenta anos, recorda Stark, uma das disciplinas mais importantes nas licenciaturas das melhores universidades americanas chamava-se Western Civilization. Aí se estudavam os grandes livros e as grandes obras de arte da cultura ocidental. Mas as modas "politicamente correctas" ostracizaram essa área de estudo. Diz-se agora que a civilização ocidental é apenas uma entre muitas civilizações e que estudar a nossa seria "etnocêntrico e arrogante."
Isto tem gerado uma ignorância patética sobre o passado. E, com ela, têm crescido as mais divertidas e absurdas teses politicamente correctas. Stark recorda algumas delas: que os gregos copiaram a sua cultura do Egipto; que a ciência europeia teve origem no Islão; que a riqueza ocidental foi roubada às sociedades não ocidentais; que a modernidade ocidental foi realmente criada na China.
Stark não nega que o Ocidente tenha sabiamente adoptado elementos de outras civilizações. Mas afirma, e procura ilustrar ao longo de mais de 400 páginas, que "a modernidade é inteiramente o produto da civilização ocidental." De caminho, Stark procura refutar muitos outros preconceitos actualmente dominantes na nossa cultura política.
"A Idade das Trevas", nunca existiu, argumenta o autor, em defesa do cristianismo medieval. Foi na verdade uma era de notável progresso e inovação, que incluiu a emergência do capitalismo. Também a chamada "revolução científica" do século XVII não foi propriamente uma revolução, no sentido de uma ruptura com o passado. Terá sido basicamente o culminar de um gradual progresso científico cujas raízes remontam às primeiras universidades do século XII — fundadas pelos filósofos escolásticos e protegidas pela Igreja de Roma.
Outro mito que ocupa Stark é o da revolução industrial como produto do desígnio central de governos esclarecidos. Em rigor, quase o contrário pode ter acontecido. A Inglaterra, a Holanda e a liga das cidades hanseáticas lideraram a industrialização porque os direitos de propriedade e o primado da lei sobre a vontade das cortes estava aí solidamente estabelecido. A origem desse primado da lei sobre o poder político deve ser procurada na Magna Carta de 1215 – que no próximo ano de 2015 celebrará a simpática idade de 800 anos. A Inglaterra tinha ainda a vantagem adicional de não ter uma larga corte centralizada em Londres, financiada por impostos. A aristocracia estava dispersa pelo país, nas suas vastas propriedades, de que não era absentista, e por isso procurou rentabilizá-las descentralizadamente, através de inovações e investimento.
A centralização é aliás um dos alvos preferidos de Rodney Stark. Isso leva-o a criticar o Império Romano, que só terá assistido a dois progressos maiores: a invenção do cimento e a emergência do cristianismo, sendo que este último contou com a severa oposição imperial. A queda do Império Romano, argumenta Stark, foi aliás altamente benéfica para a Europa e o Ocidente. Removeu um sistema altamente centralizado e caro, fundado em impostos altos, e deu lugar a uma vasta pluralidade de centros de decisão que concorriam entre si e que tinham de gerar auto-sustento.
A lista de observações politicamente incorrectas é interminável. O livro está escrito num tom algo panfletário, por vezes bastante divertido, mas não é um simples panfleto. Stark mobiliza uma vastíssima bibliografia académica. Basicamente, articula num único livro o que muitos autores vêm dizendo em áreas mais especializadas. Vale a pena citar as suas palavras de conclusão:
"Sem dúvida que a modernidade ocidental tem as suas limitações e os seus descontentes. Ainda assim, é de longe melhor do que as alternativas – não só, nem primariamente, devido à sua tecnologia avançada, mas devido ao seu comprometimento fundamental com a liberdade, a razão e a dignidade humana".
2014-08-11
Há cem anos, quando as luzes se apagaram
JOÃO CARLOS ESPADA, Público 04/08/2014
Hoje à noite, na Abadia de Westminster, será celebrado um serviço religioso em memória de todos os que caíram na I Guerra Mundial. Pelas 22h, as luzes da abadia serão apagadas uma após outra, até restar apenas um ténue candeeiro a petróleo, junto da campa do Soldado Desconhecido.
Às 23h — cem anos depois de o Reino Unido ter declarado guerra à Alemanha, por esta ter invadido a Bélgica — também essa luz será apagada. O mesmo acontecerá em vários edifícios públicos, incluindo o Parlamento. Todos os cidadãos britânicos são convidados a seguir um procedimento semelhante nas suas casas.
Escrevendo no Telegraph de sábado passado, Charles Moore (biógrafo de Margaret Thatcher e antigo director daquele jornal) recordou que o Reino Unido é o único país europeu "que esteve no lado certo nas duas guerras mundiais, que lhes sobreviveu sem ser conquistado, e que mantém, sem rupturas, o mesmo sistema constitucional que existia antes dessas guerras". Apesar disso, ou por isso mesmo, ele considera totalmente apropriada a forma discreta e inclusiva com que o seu país vai assinalar o centenário da I Guerra Mundial.
Julgo que tem razão. Em vez de procurar os países "culpados" pela I Guerra, devemos recordar as ideias políticas que propiciaram os comportamentos que conduziram à guerra.
Basicamente, essas ideias exprimiam uma reacção contra a atmosfera moral e cultural que presidira aos cem anos de paz e crescimento económico ocorridos entre o fim das guerras napoleónicas (1815) e o início da I Guerra (1914) — um período por vezes designado por Pax Britannica.
Podemos agrupar essas ideias reaccionárias/revolucionárias em três categorias principais: (1) o proteccionismo nacionalista; (2) a ideologia da luta de classes; (3) o niilismo anticristão. Friedrich List (1789-1846), Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Nietzsche (1844-1900) foram os autores, entre muitos outros, que mais se celebrizaram na defesa dessas ideias.
List, de longe o mais moderado, publicou em 1841 um best-seller europeu que deu pelo nome de O Sistema Nacional de Economia Política. Aí criticou aquilo que designou por "a escola", referindo-se ao ideário do comércio livre e do governo imparcial, limitado pela lei, que tinha sido defendido por Adam Smith em A Riqueza das Nações (1776). Em alternativa, defendeu que os governos nacionais deviam proteger e incentivar sectores económicos específicos, promovendo uma espécie de "guerra económica" pela supremacia nacional. Ainda que não intencionalmente, as ideias de List promoveram o proteccionismo nacionalista na Europa, onde antes tinha sido dominante a prática do comércio livre.
As ideias de Karl Marx são conhecidas, embora o seu alcance permaneça mal compreendido. Basicamente, Marx desencadeou um ataque fulminante contra o Estado de direito e o sistema parlamentar, acusando-os de servir uma classe economicamente dominante. Segundo ele, os princípios da igualdade perante a lei, da separação de poderes e do governo que responde ao Parlamento eram pura hipocrisia. No seu lugar, colocou a crua guerra pelo poder nu, absoluto e arbitrário, sem limites legais, em nome dos interesses dos pobres, liderados pelo proletariado e pelo seu partido de vanguarda, o partido comunista.
Nietzsche foi, a meus olhos, o mais desagradável. Onde Marx e, em grau menor, List tinham instalado o relativismo dos meios ao serviço de fins considerados "bons", Nietzsche instalou o relativismo absoluto — de meios e de fins. Denunciando o "moralismo inglês de lojistas e comerciantes", pregou uma nova "moralidade", que devia estar "para além do bem e do mal": a chamada "vontade de poder". O alvo central dos seus ataques foi a mensagem moral cristã — que ao longo dos séculos permitira à civilização europeia conter o arbítrio da vontade sem entraves, sob o imperativo moral do sentido de dever, fundado na lei natural, a lei de Deus.
As ideias de List, Marx e Nietzsche anunciavam um mundo novo, liberto dos preconceitos antiquados da "velha Europa" — preconceitos que tinham sido subscritos por antiquados autores europeus, como Aristóteles, Tomás de Aquino, John Locke, Montesquieu, Adam Smith, Edmund Burke, Immanuel Kant ou Alexis de Tocqueville.
Na noite de 4 de Agosto de 1914, um gentleman antiquado intuiu os efeitos catastróficos que adviriam da "libertação" desses velhos preconceitos europeus. Chamava-se (Sir) Edward Grey, era ministro dos Negócios Estrangeiros britânico e terá dito: "The lamps are going out all over Europe; we shall not see them lit again in our life."
Hoje à noite, na Abadia de Westminster, será celebrado um serviço religioso em memória de todos os que caíram na I Guerra Mundial. Pelas 22h, as luzes da abadia serão apagadas uma após outra, até restar apenas um ténue candeeiro a petróleo, junto da campa do Soldado Desconhecido.
Às 23h — cem anos depois de o Reino Unido ter declarado guerra à Alemanha, por esta ter invadido a Bélgica — também essa luz será apagada. O mesmo acontecerá em vários edifícios públicos, incluindo o Parlamento. Todos os cidadãos britânicos são convidados a seguir um procedimento semelhante nas suas casas.
Escrevendo no Telegraph de sábado passado, Charles Moore (biógrafo de Margaret Thatcher e antigo director daquele jornal) recordou que o Reino Unido é o único país europeu "que esteve no lado certo nas duas guerras mundiais, que lhes sobreviveu sem ser conquistado, e que mantém, sem rupturas, o mesmo sistema constitucional que existia antes dessas guerras". Apesar disso, ou por isso mesmo, ele considera totalmente apropriada a forma discreta e inclusiva com que o seu país vai assinalar o centenário da I Guerra Mundial.
Julgo que tem razão. Em vez de procurar os países "culpados" pela I Guerra, devemos recordar as ideias políticas que propiciaram os comportamentos que conduziram à guerra.
Basicamente, essas ideias exprimiam uma reacção contra a atmosfera moral e cultural que presidira aos cem anos de paz e crescimento económico ocorridos entre o fim das guerras napoleónicas (1815) e o início da I Guerra (1914) — um período por vezes designado por Pax Britannica.
Podemos agrupar essas ideias reaccionárias/revolucionárias em três categorias principais: (1) o proteccionismo nacionalista; (2) a ideologia da luta de classes; (3) o niilismo anticristão. Friedrich List (1789-1846), Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Nietzsche (1844-1900) foram os autores, entre muitos outros, que mais se celebrizaram na defesa dessas ideias.
List, de longe o mais moderado, publicou em 1841 um best-seller europeu que deu pelo nome de O Sistema Nacional de Economia Política. Aí criticou aquilo que designou por "a escola", referindo-se ao ideário do comércio livre e do governo imparcial, limitado pela lei, que tinha sido defendido por Adam Smith em A Riqueza das Nações (1776). Em alternativa, defendeu que os governos nacionais deviam proteger e incentivar sectores económicos específicos, promovendo uma espécie de "guerra económica" pela supremacia nacional. Ainda que não intencionalmente, as ideias de List promoveram o proteccionismo nacionalista na Europa, onde antes tinha sido dominante a prática do comércio livre.
As ideias de Karl Marx são conhecidas, embora o seu alcance permaneça mal compreendido. Basicamente, Marx desencadeou um ataque fulminante contra o Estado de direito e o sistema parlamentar, acusando-os de servir uma classe economicamente dominante. Segundo ele, os princípios da igualdade perante a lei, da separação de poderes e do governo que responde ao Parlamento eram pura hipocrisia. No seu lugar, colocou a crua guerra pelo poder nu, absoluto e arbitrário, sem limites legais, em nome dos interesses dos pobres, liderados pelo proletariado e pelo seu partido de vanguarda, o partido comunista.
Nietzsche foi, a meus olhos, o mais desagradável. Onde Marx e, em grau menor, List tinham instalado o relativismo dos meios ao serviço de fins considerados "bons", Nietzsche instalou o relativismo absoluto — de meios e de fins. Denunciando o "moralismo inglês de lojistas e comerciantes", pregou uma nova "moralidade", que devia estar "para além do bem e do mal": a chamada "vontade de poder". O alvo central dos seus ataques foi a mensagem moral cristã — que ao longo dos séculos permitira à civilização europeia conter o arbítrio da vontade sem entraves, sob o imperativo moral do sentido de dever, fundado na lei natural, a lei de Deus.
As ideias de List, Marx e Nietzsche anunciavam um mundo novo, liberto dos preconceitos antiquados da "velha Europa" — preconceitos que tinham sido subscritos por antiquados autores europeus, como Aristóteles, Tomás de Aquino, John Locke, Montesquieu, Adam Smith, Edmund Burke, Immanuel Kant ou Alexis de Tocqueville.
Na noite de 4 de Agosto de 1914, um gentleman antiquado intuiu os efeitos catastróficos que adviriam da "libertação" desses velhos preconceitos europeus. Chamava-se (Sir) Edward Grey, era ministro dos Negócios Estrangeiros britânico e terá dito: "The lamps are going out all over Europe; we shall not see them lit again in our life."
2014-07-27
Oração sobre o uso dos bens
Oração colecta:
Deus, protector dos que em Vós esperam,
sem Vós nada tem valor, nada é santo.
Multiplicai sobre nós a vossa misericórdia,
para que, conduzidos por Vós,
usemos de tal modo os bens temporais
que possamos aderir desde já aos bens eternos.
2014-07-19
A crise das bruxas e dos maus
Inês Teotónio Pereira, ionline, 2014.07.12
O que hoje se tenta passar às crianças é que o mal não existe, que os maus são bons e que qualquer coisa que mostre ou revele crueldade incita à violência
A versão clássica dos maus da fita está em crise: já não existem maus, nem nas fitas nem em lado nenhum. Se alguém pega numa arma e assassina dezenas de pessoas numa universidade ou se um grupo de terroristas aniquila dezenas de civis, a tendência é justificar os crimes com o contexto. Porque a culpa, em primeira instância, nunca é dos autores. A culpa é quase sempre da sociedade, da globalização, dos capitalistas, do contexto familiar, dos filmes violentos, da pobreza, da liberalização da venda de armas, da religião, etc. O que prevalece nesta teoria é que as pessoas, de um modo geral, são estúpidas, coitadas, e a moral que têm ou não têm depende exclusivamente do contexto. Os maus são vítimas e, na verdade, somos todos bons selvagens, incluindo os terroristas, os assassinos, etc. Os maus são os contextos, e não os criminosos.
Esta febre de fazer tábua rasa do bem e do mal, dos maus e dos bons, à boa maneira dos filmes de cowboys e do super-homem, chegou aos contos infantis. E não, não se inventaram novos contos infantis, adulteraram-se os clássicos. Pegou-se no trabalho genial dos irmãos Grimm, de Andersen e de muitos outros que se esfalfaram a trabalhar e mudaram-se as histórias para as adaptar aos conceitos modernos e, por isso, correctos.
As histórias que foram escritas com o objectivo de traçar uma linha bem definida entre o bem e o mal, de ajudar a criar uma consciência moral, de despertar a sensibilidade das crianças, que conseguem ser mais cruéis do que qualquer bruxa má, de nos fazer chorar e de educar o nosso sentido de justiça, são hoje histórias sem heróis, sem moral e sem interesse. Hoje parte-se do princípio que as crianças, primeiro, são parvas e, segundo, que nascem sensíveis, com as doses certas de moral e com um sentimento de justiça muito apurado. Mas não é verdade, elas não nascem assim, e os clássicos infantis são obras-primas que nos ajudaram a todos a desenvolver tudo isto.
No novo filme da Disney da Bela Adormecida, a questão central é perceber porque é que a bruxa é má. E descobre-se que, afinal, a bruxa não é má: mau era o rei que lhe cortou as asas e ela, coitada, não teve alternativa senão lançar um cruel feitiço sobre a princesa para salvar o reino (enfim, é complicado...). Nesta história não há realmente maus, há contexto. E a moral da história é que tudo depende do contexto.
Também o clássico João e Maria que se conta hoje às crianças é outra história completamente diferente daquela que foi escrita. Afinal, os meninos perderam-se na floresta e não foi a madrasta e o pai que os abandonaram reiteradamente porque não tinham dinheiro para os sustentar. Nada disso. Afinal, foi por acaso que os meninos foram parar a casa da bruxa - perderam-se - e a bruxa também não caiu para dentro do forno empurrada pela heroína Maria, mas apenas ficou sem a vassoura. Aqui nem sequer há moral da história, há apenas aventura.
O que hoje se tenta passar às crianças é que o mal não existe, que os maus são bons e que qualquer coisa que mostre ou revele crueldade incita à violência. Com isto matam-se heróis e trituram- -se modelos de justiça, moral e coragem.
Até que as crianças crescem e, quando todos esperávamos que, com esta nova cultura infantil, todas elas se tornassem miniaturas da madre Teresa de Calcutá e que as guerras desaparecessem da fase da terra, eis que elas se tornaram uma geração que se está nas tintas para tudo isso. Aprenderam que há uma justificação plausível para tudo e principalmente para a maldade, por isso não há lados. A eterna luta do bem contra o mal e do final feliz é qualquer coisa que não lhes assiste. Os heróis, esses, são os futebolistas e a Miley Cyrus.
E o mais caricato de tudo isto é que os jogos de consola mais vendidos são os mais violentos, em que o protagonista principal é mesmo mau. Um mau eficaz, com estilo e impiedoso. Mas não faz mal, dizem, porque é tudo fantasia. O que faz mal é cantar aos nossos filhos o "Atirei o pau ao gato", não vão eles, quando crescerem, adoptar como desporto nacional atirar paus aos gatos.
O que hoje se tenta passar às crianças é que o mal não existe, que os maus são bons e que qualquer coisa que mostre ou revele crueldade incita à violência
A versão clássica dos maus da fita está em crise: já não existem maus, nem nas fitas nem em lado nenhum. Se alguém pega numa arma e assassina dezenas de pessoas numa universidade ou se um grupo de terroristas aniquila dezenas de civis, a tendência é justificar os crimes com o contexto. Porque a culpa, em primeira instância, nunca é dos autores. A culpa é quase sempre da sociedade, da globalização, dos capitalistas, do contexto familiar, dos filmes violentos, da pobreza, da liberalização da venda de armas, da religião, etc. O que prevalece nesta teoria é que as pessoas, de um modo geral, são estúpidas, coitadas, e a moral que têm ou não têm depende exclusivamente do contexto. Os maus são vítimas e, na verdade, somos todos bons selvagens, incluindo os terroristas, os assassinos, etc. Os maus são os contextos, e não os criminosos.
Esta febre de fazer tábua rasa do bem e do mal, dos maus e dos bons, à boa maneira dos filmes de cowboys e do super-homem, chegou aos contos infantis. E não, não se inventaram novos contos infantis, adulteraram-se os clássicos. Pegou-se no trabalho genial dos irmãos Grimm, de Andersen e de muitos outros que se esfalfaram a trabalhar e mudaram-se as histórias para as adaptar aos conceitos modernos e, por isso, correctos.
As histórias que foram escritas com o objectivo de traçar uma linha bem definida entre o bem e o mal, de ajudar a criar uma consciência moral, de despertar a sensibilidade das crianças, que conseguem ser mais cruéis do que qualquer bruxa má, de nos fazer chorar e de educar o nosso sentido de justiça, são hoje histórias sem heróis, sem moral e sem interesse. Hoje parte-se do princípio que as crianças, primeiro, são parvas e, segundo, que nascem sensíveis, com as doses certas de moral e com um sentimento de justiça muito apurado. Mas não é verdade, elas não nascem assim, e os clássicos infantis são obras-primas que nos ajudaram a todos a desenvolver tudo isto.
No novo filme da Disney da Bela Adormecida, a questão central é perceber porque é que a bruxa é má. E descobre-se que, afinal, a bruxa não é má: mau era o rei que lhe cortou as asas e ela, coitada, não teve alternativa senão lançar um cruel feitiço sobre a princesa para salvar o reino (enfim, é complicado...). Nesta história não há realmente maus, há contexto. E a moral da história é que tudo depende do contexto.
Também o clássico João e Maria que se conta hoje às crianças é outra história completamente diferente daquela que foi escrita. Afinal, os meninos perderam-se na floresta e não foi a madrasta e o pai que os abandonaram reiteradamente porque não tinham dinheiro para os sustentar. Nada disso. Afinal, foi por acaso que os meninos foram parar a casa da bruxa - perderam-se - e a bruxa também não caiu para dentro do forno empurrada pela heroína Maria, mas apenas ficou sem a vassoura. Aqui nem sequer há moral da história, há apenas aventura.
O que hoje se tenta passar às crianças é que o mal não existe, que os maus são bons e que qualquer coisa que mostre ou revele crueldade incita à violência. Com isto matam-se heróis e trituram- -se modelos de justiça, moral e coragem.
Até que as crianças crescem e, quando todos esperávamos que, com esta nova cultura infantil, todas elas se tornassem miniaturas da madre Teresa de Calcutá e que as guerras desaparecessem da fase da terra, eis que elas se tornaram uma geração que se está nas tintas para tudo isso. Aprenderam que há uma justificação plausível para tudo e principalmente para a maldade, por isso não há lados. A eterna luta do bem contra o mal e do final feliz é qualquer coisa que não lhes assiste. Os heróis, esses, são os futebolistas e a Miley Cyrus.
E o mais caricato de tudo isto é que os jogos de consola mais vendidos são os mais violentos, em que o protagonista principal é mesmo mau. Um mau eficaz, com estilo e impiedoso. Mas não faz mal, dizem, porque é tudo fantasia. O que faz mal é cantar aos nossos filhos o "Atirei o pau ao gato", não vão eles, quando crescerem, adoptar como desporto nacional atirar paus aos gatos.
2014-07-11
São Bento estabeleceu a paz de Cristo na Europa invadida pelos bárbaros
Pio XII, papa de 1939 a 1958, Encíclica «Fulgens radiatur», de 21/03/1947
São Bento estabeleceu a paz de Cristo na Europa invadida pelos bárbaros
Com efeito, enquanto nessa escura e convulsionada época da história o cultivo da terra, o amor do trabalho e da arte, o estudo das ciências e das letras, tanto religiosas como profanas, eram lançados, por uma espécie de desdém geral e sintomático, ao abandono, dos mosteiros beneditinos sai uma plêiade luminosa de agricultores, de artistas, de sábios, que nos salvaram incólumes os monumentos da velha literatura, conciliaram os velhos e os novos povos, em guerras constantes, reduzindo-os da barbárie renascente, das correrias, do saque, à moderação da moral humana e cristã, à abnegação do trabalho, à luz da verdade; reconstituíram, enfim, uma civilização enformada nos princípios do Evangelho.
Isso, porém, não é tudo. A base, a directriz, por assim dizer, suprema de toda a vida beneditina é que todo trabalho, seja ele qual for, intelectual ou manual, seja, antes de mais, para o monge, veículo que o eleve a Jesus Cristo e centelha que o inflame no seu amor perfeitíssimo. Não podem, com efeito, as coisas da terra, nem do universo, satisfazer as exigências espirituais do homem, que Deus criou para Si. […] Por essa razão, é absolutamente necessário que nada se anteponha ao amor de Cristo, que nada nos seja mais caro que o seu amor, que, numa palavra, nada absolutamente se anteponha a Cristo, que Se digna conduzir-nos à posse da vida eterna.
A este ardentíssimo amor de Jesus Cristo é necessário que corresponda o amor do próximo, porque a todos, indistintamente, devemos o ósculo fraterno da paz e o tributo solícito do nosso arrimo. Donde, enquanto a intriga e o ódio convulsionavam e lançavam os povos nos campos de batalha e, nessa confusão cósmica dos homens e das coisas, erguiam ao alto o facho sangrento da morte, do roubo, da miséria e das lágrimas, Bento legava a seus filhos este preceito santíssimo: «Ponha-se particular cuidado e solicitude no recebimento dos pobres e viajantes estrangeiros, porque é na pessoa destes que principalmente se recebe a Cristo»; e «todos os hóspedes que se apresentarem no mosteiro se recebam como se fossem Cristo, porque Ele há-de dizer: fui hóspede e recebeste-me» (Mt 25,35). E mais ainda: «antes de tudo, haja o maior cuidado no tratamento dos doentes, sirvam-se com tal diligência como se fossem realmente Cristo, porque Ele disse: estive doente e me viestes visitar» (v. 36).
São Bento estabeleceu a paz de Cristo na Europa invadida pelos bárbaros
Com efeito, enquanto nessa escura e convulsionada época da história o cultivo da terra, o amor do trabalho e da arte, o estudo das ciências e das letras, tanto religiosas como profanas, eram lançados, por uma espécie de desdém geral e sintomático, ao abandono, dos mosteiros beneditinos sai uma plêiade luminosa de agricultores, de artistas, de sábios, que nos salvaram incólumes os monumentos da velha literatura, conciliaram os velhos e os novos povos, em guerras constantes, reduzindo-os da barbárie renascente, das correrias, do saque, à moderação da moral humana e cristã, à abnegação do trabalho, à luz da verdade; reconstituíram, enfim, uma civilização enformada nos princípios do Evangelho.
Isso, porém, não é tudo. A base, a directriz, por assim dizer, suprema de toda a vida beneditina é que todo trabalho, seja ele qual for, intelectual ou manual, seja, antes de mais, para o monge, veículo que o eleve a Jesus Cristo e centelha que o inflame no seu amor perfeitíssimo. Não podem, com efeito, as coisas da terra, nem do universo, satisfazer as exigências espirituais do homem, que Deus criou para Si. […] Por essa razão, é absolutamente necessário que nada se anteponha ao amor de Cristo, que nada nos seja mais caro que o seu amor, que, numa palavra, nada absolutamente se anteponha a Cristo, que Se digna conduzir-nos à posse da vida eterna.
A este ardentíssimo amor de Jesus Cristo é necessário que corresponda o amor do próximo, porque a todos, indistintamente, devemos o ósculo fraterno da paz e o tributo solícito do nosso arrimo. Donde, enquanto a intriga e o ódio convulsionavam e lançavam os povos nos campos de batalha e, nessa confusão cósmica dos homens e das coisas, erguiam ao alto o facho sangrento da morte, do roubo, da miséria e das lágrimas, Bento legava a seus filhos este preceito santíssimo: «Ponha-se particular cuidado e solicitude no recebimento dos pobres e viajantes estrangeiros, porque é na pessoa destes que principalmente se recebe a Cristo»; e «todos os hóspedes que se apresentarem no mosteiro se recebam como se fossem Cristo, porque Ele há-de dizer: fui hóspede e recebeste-me» (Mt 25,35). E mais ainda: «antes de tudo, haja o maior cuidado no tratamento dos doentes, sirvam-se com tal diligência como se fossem realmente Cristo, porque Ele disse: estive doente e me viestes visitar» (v. 36).
2014-06-30
Anestesia sem cirurgia
JOÃO CÉSAR DAS NEVES, DN, 2014.06.24
Antigamente as cirurgias eram feitas a frio, sem adormecer o paciente. Nos estretores da dor muitos morriam da cura. As modernas anestesias tornaram tudo mais sereno e eficaz, mas trouxeram novos problemas. Confundindo alívio com saúde, alguns evitam o tratamento incómodo, morrendo por descuido terapêutico. É isso que se passa na economia internacional.
Quando há 85 anos rebentou a bolha bolsista de 1929, as autoridades deixaram os bancos cair, para os punir das evidentes loucuras de especulação. O resultado foi o colapso da circulação monetária. Falindo os bancos, os depósitos desapareceram; as pessoas sem dinheiro não gastavam, o que arruinou as empresas, deixando muita gente sem emprego e sem dinheiro; isso falia novas empresas, recomeçando a espiral arrasadora. Foi a "grande depressão", maior catástrofe económica da História.
Um impacto tão evidente ensinou a lição. O mundo não só exigiu mais dos bancos centrais, mas criou fundos internacionais para amortecer as dores. Quando em 2008 rebentou nova bolha, as autoridades fizeram com rapidez aquilo que deviam ter feito em 1929. A súbita e vasta injecção de moeda pelos bancos centrais segurou a generalidade do crédito, enquanto programas de ajustamento do FMI e UE apoiavam as economias frágeis. Até em Portugal os custos foram muito inferiores à depressão. Sabemos já a amortecer os terríveis efeitos da explosão de bolhas.
Aí surgiu novo perigo. Desequilíbrios de pagamentos e orçamentos são mero sintoma de dramas mais profundos, pois o problema do mundo não é financeiro mas económico. A anestesia apenas cria uma janela de conforto para realizar a cirurgia drástica que, essa sim, elimina o mal. Quando bancos centrais e autoridades europeias adormecem as dores, fazem o seu dever. Quando os responsáveis nacionais e empresariais usam esse alívio para esquivar medidas duras, matam o doente.
Os exemplos são evidentes. Em Portugal a ajuda da troika evitou o colapso de um défice orçamental de 11,5% do PIB em 2010, após décadas a fingir normalidade. O alívio de três anos permitia medidas indispensáveis, mas o tempo foi passando sem verdadeiras reformas. Apesar da suposta austeridade, esta oportunidade de cura foi realmente desperdiçada. Portugal discutiu, barafustou, inventou desculpas e bloqueu cortes, medidas e programas fazendo muito pouco. O défice de 5,8% em 2013 mostra que ainda não sustentamos o Estado que temos. As taxas de juro da dívida pública estão baixas, mas isso deve--se à anestesia da liquidez mundial, sem revelar verdadeira confiança dos mercados. Assim se caminha alegremente para uma catástrofe muito maior do que a evitada há três anos.
O que se diz do Estado pode afirmar-se da banca. Repletas de dinheiro barato emitido pelos bancos centrais, as instituições de crédito europeias sobrevivem sem dificuldades, apesar dos erros que acumularam nos anos de facilidade. Mas poucas aproveitam a folga para colmatar os buracos e limpar o lixo do balanço. Limitam--se a rodar créditos incobráveis, alimentando empresas fantasmas que fingem sobreviver. O doente está ligado à máquina mas sem tratamento e sem realmente recuperar.
Quando no fim de 2008 os bancos centrais encharcaram as economias com liquidez, pensavam tratar-se de um expediente de alguns meses, simples ajuda para permitir o ajuste das economias sem cair em ruínas. Passados quase seis anos, o dinheiro não só não saiu mas continua a jorrar a taxas alucinantes. A terrível doença, a desconfiança, permanece e até se agravou. A ajuda temporária perpetua-se e pode transformar-se na pior das armadilhas. A culpa não é das autoridades monetárias, meros anestesistas, mas nas reformas evitadas, ilusões cómodas, sobretudo na suspeita geral que todos alimentam, sem perceber que serram o tronco onde se sentam.
Nunca a economia viveu tanto tempo alagada em tanta liquidez. Sob a inundação endémica surgem novos sintomas, deformidades e maleitas que ninguém conhece. Assim se vai comodamente preparando a desgraça que enfrentaremos daqui a uns tempos.
Antigamente as cirurgias eram feitas a frio, sem adormecer o paciente. Nos estretores da dor muitos morriam da cura. As modernas anestesias tornaram tudo mais sereno e eficaz, mas trouxeram novos problemas. Confundindo alívio com saúde, alguns evitam o tratamento incómodo, morrendo por descuido terapêutico. É isso que se passa na economia internacional.
Quando há 85 anos rebentou a bolha bolsista de 1929, as autoridades deixaram os bancos cair, para os punir das evidentes loucuras de especulação. O resultado foi o colapso da circulação monetária. Falindo os bancos, os depósitos desapareceram; as pessoas sem dinheiro não gastavam, o que arruinou as empresas, deixando muita gente sem emprego e sem dinheiro; isso falia novas empresas, recomeçando a espiral arrasadora. Foi a "grande depressão", maior catástrofe económica da História.
Um impacto tão evidente ensinou a lição. O mundo não só exigiu mais dos bancos centrais, mas criou fundos internacionais para amortecer as dores. Quando em 2008 rebentou nova bolha, as autoridades fizeram com rapidez aquilo que deviam ter feito em 1929. A súbita e vasta injecção de moeda pelos bancos centrais segurou a generalidade do crédito, enquanto programas de ajustamento do FMI e UE apoiavam as economias frágeis. Até em Portugal os custos foram muito inferiores à depressão. Sabemos já a amortecer os terríveis efeitos da explosão de bolhas.
Aí surgiu novo perigo. Desequilíbrios de pagamentos e orçamentos são mero sintoma de dramas mais profundos, pois o problema do mundo não é financeiro mas económico. A anestesia apenas cria uma janela de conforto para realizar a cirurgia drástica que, essa sim, elimina o mal. Quando bancos centrais e autoridades europeias adormecem as dores, fazem o seu dever. Quando os responsáveis nacionais e empresariais usam esse alívio para esquivar medidas duras, matam o doente.
Os exemplos são evidentes. Em Portugal a ajuda da troika evitou o colapso de um défice orçamental de 11,5% do PIB em 2010, após décadas a fingir normalidade. O alívio de três anos permitia medidas indispensáveis, mas o tempo foi passando sem verdadeiras reformas. Apesar da suposta austeridade, esta oportunidade de cura foi realmente desperdiçada. Portugal discutiu, barafustou, inventou desculpas e bloqueu cortes, medidas e programas fazendo muito pouco. O défice de 5,8% em 2013 mostra que ainda não sustentamos o Estado que temos. As taxas de juro da dívida pública estão baixas, mas isso deve--se à anestesia da liquidez mundial, sem revelar verdadeira confiança dos mercados. Assim se caminha alegremente para uma catástrofe muito maior do que a evitada há três anos.
O que se diz do Estado pode afirmar-se da banca. Repletas de dinheiro barato emitido pelos bancos centrais, as instituições de crédito europeias sobrevivem sem dificuldades, apesar dos erros que acumularam nos anos de facilidade. Mas poucas aproveitam a folga para colmatar os buracos e limpar o lixo do balanço. Limitam--se a rodar créditos incobráveis, alimentando empresas fantasmas que fingem sobreviver. O doente está ligado à máquina mas sem tratamento e sem realmente recuperar.
Quando no fim de 2008 os bancos centrais encharcaram as economias com liquidez, pensavam tratar-se de um expediente de alguns meses, simples ajuda para permitir o ajuste das economias sem cair em ruínas. Passados quase seis anos, o dinheiro não só não saiu mas continua a jorrar a taxas alucinantes. A terrível doença, a desconfiança, permanece e até se agravou. A ajuda temporária perpetua-se e pode transformar-se na pior das armadilhas. A culpa não é das autoridades monetárias, meros anestesistas, mas nas reformas evitadas, ilusões cómodas, sobretudo na suspeita geral que todos alimentam, sem perceber que serram o tronco onde se sentam.
Nunca a economia viveu tanto tempo alagada em tanta liquidez. Sob a inundação endémica surgem novos sintomas, deformidades e maleitas que ninguém conhece. Assim se vai comodamente preparando a desgraça que enfrentaremos daqui a uns tempos.
2014-06-03
Defesa de Doutoramento
Aproxima-se a minha defesa de Tese... é já na terça-feira, dia 17 de Junho de 2014, às 10:00 no Anfiteatro PA-3 (Piso -1 do Pavilhão de Matemática) do IST.
Descoberta de dados RFID de forma escalável e segura
Os sistemas ERP (Enterprise Resources Planning) e SCM (Supply Chain Management) trouxeram grandes melhorias ao funcionamento das cadeias de fornecimento. Para continuar a melhorar é necessária uma maior ligação entre os mundos virtual e físico. Aqui, as tecnologias de identificação automática por rádio-frequência (RFID), permitem que dados de identificação de objectos físicos etiquetados possam ser recolhidos continuamente por leitores instalados em localizações relevantes (fábricas, armazéns, centros de distribuição, etc). Os dados são guardados e geridos por sistemas de rastreabilidade que permitem dar resposta a interrogações, tais como Localizar e Rastrear.
Um sistema de rastreabilidade prático deve tratar os problemas da escalabilidade e da visibilidade dos dados. O sistema deve ter um desempenho adequado ao número de objectos físicos que circulam na cadeia de fornecimento; e deve proteger os dados de negócio de acessos não autorizados.
As contribuições originais desta dissertação são as ferramentas de avaliação quantitativa, que permitem a comparação de sistemas de rastreabilidade para diversos cenários de cadeias de fornecimento; e uma linguagem de autorização que pode ser usada para definir e aplicar políticas de restrição da visibilidade de dados. Os resultados são ilustrados com exemplos de várias indústrias e com um caso de estudo da indústria Farmacêutica.
--
Scalable and secure RFID data discovery
The combined use of Enterprise Resources Planning (ERP) and Supply Chain Management (SCM) systems has greatly improved the efficiency of supply chains. Further improvements require a deeper connection between the virtual and physical worlds. Automatic Identification technologies, like radio-frequency identification (RFID), allow identification data about tagged physical objects to be collected continuously by readers deployed across locations in the supply chain. This data is stored and managed using traceability systems to allow efficient answers to traceability queries, like Track and Trace.
A practical traceability system should address both the scale and data visibility problems. The system should perform adequately for the number of physical objects flowing in the supply chain; and it should protect the sensitive business data from unauthorized access.
The original contributions of this dissertation are a quantitative assessment framework, called TrakChain, that compares traceability systems for given supply chain scenarios; and a supply chain authorization language that can be used to define and enforce data visibility restriction policies. The results are illustrated with examples from several industries and a case study in the Pharmaceutical supply chain.
Descoberta de dados RFID de forma escalável e segura
Os sistemas ERP (Enterprise Resources Planning) e SCM (Supply Chain Management) trouxeram grandes melhorias ao funcionamento das cadeias de fornecimento. Para continuar a melhorar é necessária uma maior ligação entre os mundos virtual e físico. Aqui, as tecnologias de identificação automática por rádio-frequência (RFID), permitem que dados de identificação de objectos físicos etiquetados possam ser recolhidos continuamente por leitores instalados em localizações relevantes (fábricas, armazéns, centros de distribuição, etc). Os dados são guardados e geridos por sistemas de rastreabilidade que permitem dar resposta a interrogações, tais como Localizar e Rastrear.
Um sistema de rastreabilidade prático deve tratar os problemas da escalabilidade e da visibilidade dos dados. O sistema deve ter um desempenho adequado ao número de objectos físicos que circulam na cadeia de fornecimento; e deve proteger os dados de negócio de acessos não autorizados.
As contribuições originais desta dissertação são as ferramentas de avaliação quantitativa, que permitem a comparação de sistemas de rastreabilidade para diversos cenários de cadeias de fornecimento; e uma linguagem de autorização que pode ser usada para definir e aplicar políticas de restrição da visibilidade de dados. Os resultados são ilustrados com exemplos de várias indústrias e com um caso de estudo da indústria Farmacêutica.
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Scalable and secure RFID data discovery
The combined use of Enterprise Resources Planning (ERP) and Supply Chain Management (SCM) systems has greatly improved the efficiency of supply chains. Further improvements require a deeper connection between the virtual and physical worlds. Automatic Identification technologies, like radio-frequency identification (RFID), allow identification data about tagged physical objects to be collected continuously by readers deployed across locations in the supply chain. This data is stored and managed using traceability systems to allow efficient answers to traceability queries, like Track and Trace.
A practical traceability system should address both the scale and data visibility problems. The system should perform adequately for the number of physical objects flowing in the supply chain; and it should protect the sensitive business data from unauthorized access.
The original contributions of this dissertation are a quantitative assessment framework, called TrakChain, that compares traceability systems for given supply chain scenarios; and a supply chain authorization language that can be used to define and enforce data visibility restriction policies. The results are illustrated with examples from several industries and a case study in the Pharmaceutical supply chain.
Etiquetas:
Doutoramento,
Miguel L. Pardal,
PhD,
Universidade
2014-05-28
Exemplos alemães para um melhor financiamento da ciência e tecnologia
Algumas propostas para a ciência em Portugal a partir de um olhar na Alemanha.
Pedro Bicudo, Professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa
Público
23/04/2014
Comparando com a Alemanha, com a qual comecei há uns anos um intercâmbio (numa acção integrada luso-germânica, financiada pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas e pela congénere alemã DAAD afim de fomentar colaborações internacionais), vejo como a vida académica poderia ser mais consistente e mais produtiva em Portugal.
Na Alemanha, impera a lei da eficiência e dos grandes números, e deve haver uma das maiores transmissões de tecnologia entre as universidades e as empresas. Há muitíssimos doutoramentos, cerca de 25.000 novos doutorados por ano, mas um doutoramento não é um handicap no mundo empresarial alemão. Muitos dos melhores alunos optam por fazer um doutoramento, apenas para terem a oportunidade única de realizar um trabalho perfeito e profundo, e fazerem avançar a universidade, mas depois vão directamente trabalhar em empresas. Isto porque todos os doutorados, até mesmo os doutorados em áreas mais abstractas – em matemática e em física – acabam por ser úteis nas empresas.
Bolsas em todas as áreas
Dizem-me os meus colegas alemães que cada professor universitário tem automaticamente, de uma forma inerente, atribuídas duas bolsas de doutoramento (ou de pós-doutoramento) para oferecer aos seus alunos. Estas são as bolsas de doutoramento mais tradicionais, atribuídas directamente pelas universidades, existentes em todas as possíveis áreas da ciência e da tecnologia. Para além disso, há ainda financiamento (de diversas agências) para os professores dos grupos mais produtivos cientificamente, ou de áreas estratégicas, concorrerem a programas de alguns milhões de euros e poderem atribuir mais bolsas a alunos.
Em Portugal, o Governo ignorou que todos os professores e todas as áreas são importantes para uma ciência e tecnologia sólidas, e decidiu concentrar praticamente todas as bolsas em programas doutorais muito específicos, que julga terem “mais qualidade”. Estes programas doutorais do Governo (cada programa doutoral aprovado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, dedicado a um tema particular, recebe dezenas bolsas de doutoramento) estão a deixar de fora as áreas principais investigadas nas universidades, e estão a criar um terramoto no sistema das universidades portuguesas. A maioria dos grupos de investigação fica sem financiamento e sem alunos de doutoramento. O sistema está a patinar, pois:
– Falta fazer o trabalho de base, mantendo todas as áreas da ciência e tecnologia bem activas, porque são todas importantes para a academia e para as empresas;
– Os programas doutorais que supostamente seriam “de qualidade” são mal seleccionados por existirem falhas graves nos critérios, nos procedimentos e nos júris.
Critérios e júris
Os critérios da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) estão a falhar por terem requisitos demasiado permissivos, o que aumenta a arbitrariedade na atribuição de bolsas. Por exemplo, a cada candidato a bolsa de pós-doutoramento da FCT, pede-se apenas que tenha um artigo publicado numa revista científica, mesmo que tenha feito o doutoramento há mais de três anos. Há uns anos disse-me um colega espanhol: “Aqui em Espanha um candidato recém-doutorado, que tenha publicado menos de oito artigos científicos de qualidade, nem sequer é considerado pelo júri, porque só consideramos candidatos fora de série.” Ou seja, os critérios portugueses permitem a mediocridade e frequentemente os melhores candidatos, os fora de série, não obtêm bolsa enquanto alguns candidatos bem mais fracos têm sorte.
Outro exemplo de mediocridade é o júri escolhido pela FCT para atribuir programas doutorais. Na grande área da física a que pertenço, no painel do ano passado havia apenas um jurado. Ele era especialista numa área a meio caminho entre a física e a biomédica. Era responsável por avaliar todos os programas doutorais para a física, com um valor de dezenas de milhões de euros. Como seria de esperar, fez um julgamento sumário, dando demasiado valor a aspectos irrelevantes.
Isto não se passa na Alemanha, onde os júris são muito rigorosos e consistentes a tomar as suas decisões. Por exemplo, neste momento na Universidade de Frankfurt onde me encontro, está em decisão a atribuição de um financiamento de dez milhões de euros. O tópico é estratégico, pois desenvolve investigação relacionada com o futuro grande acelerador de partículas alemão, a para Investigação de Antiprotões e Iões, que está a ser desenvolvido em Darmstadt. Esse projecto tem o objectivo de financiar bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento, missões, computadores e visitas de consultores (como eu). Mas apesar de se tratar de um financiamento comparável ao de um programa doutoral apenas do Governo português, está a ser decidido por um júri internacional do mais alto nível. O júri é composto por especialistas do mesmo tópico (não de um tópico desconexo do tópico a financiar), que inclui por exemplo o director de um grande laboratório nacional norte-americano. Este júri está a entrevistar muitos investigadores, desde os professores mais eminentes aos alunos que estão a iniciar o doutoramento.
Relações entre universidades e empresas
Outra questão importante é a dos doutoramentos nas empresas. Em Portugal, o Governo diz que grande parte dos doutoramentos deve passar a ser feito nas empresas. Isto pode funcionar nalguns casos particulares, mas no geral é muito difícil. Ao contrário das universidades, as empresas não estão vocacionadas para organizar doutoramentos.
Segundo os meus colegas na Alemanha, um professor que realize trabalho tecnológico ou de consultoria relevante para alguma empresa pode receber dessa empresa até um milhão de euros por ano sem perder o seu vínculo com a universidade. Isto ocorre frequentemente, por exemplo com a indústria automóvel, e cria pontes fortíssimas entre as empresas e a universidade. As próprias empresas querem que as universidades sejam fortes. Os pagamentos das empresas às universidades permitem não só que alguns professores possam ter excelentes salários como financiam ainda muitas bolsas de doutoramentos, não nas empresas, mas sim nas universidades.
O Governo português quer ainda que muitas mais patentes industriais sejam produzidas nas universidades. Realmente as universidades conseguem ter know-how para fazer muitas patentes, e até é bom que lancem muitas patentes para aproveitarem a criatividade dos professores e alunos. Mas é difícil prever qual dessas patentes frutificará, pois as universidades não são empresas industriais. E presentemente as universidades portuguesas têm poucos recursos financeiros para defender patentes internacionais. Disse-me um amigo, director de uma grande empresa bastante tecnológica: “A minha empresa não quer que as universidades façam patentes, primeiro porque nós é que sabemos quais são as patentes que precisamos; se precisamos de uma patente, fazemo-la nós. Em segundo lugar, nunca compramos patentes às universidades, essas patentes só nos empatam.”
Para concluir, estamos a gastar muito dinheiro com programas muito ambiciosos. Mas a atribuição do financiamento é pouco rigorosa. E não sobra financiamento para muitas áreas e tópicos, o que está a deixar em grandes dificuldades a maioria da ciência e tecnologia portuguesas. É uma crítica que ouço da parte de muitos colegas portugueses de todas as áreas.
Que tal se o financiamento de Governo para a ciência fosse maioritariamente para as universidades e os laboratórios do Estado fazerem o seu trabalho de investigação e de desenvolvimento em todas as áreas da ciência e tecnologia, um trabalho honesto, consistente e de qualidade? Se não houver financiamento para cada professor ou investigador poder orientar dois ou mais alunos de doutoramento, pelo menos os professores com um bom currículo deveriam poder gerir uma bolsa. E que tal se o Governo facilitasse a abertura de canais directos entre as empresas e as universidades, em vez de financiar programas público-privados complicados e burocráticos? Só depois de estes dois mecanismos básicos funcionarem pode frutificar o apoio de programas específicos. Por favor deixem a academia e os jovens trabalharem para melhorar a nossa ciência, a nossa tecnologia, a nossa economia e o nosso futuro.
Pedro Bicudo, Professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa
Público
23/04/2014
Comparando com a Alemanha, com a qual comecei há uns anos um intercâmbio (numa acção integrada luso-germânica, financiada pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas e pela congénere alemã DAAD afim de fomentar colaborações internacionais), vejo como a vida académica poderia ser mais consistente e mais produtiva em Portugal.
Na Alemanha, impera a lei da eficiência e dos grandes números, e deve haver uma das maiores transmissões de tecnologia entre as universidades e as empresas. Há muitíssimos doutoramentos, cerca de 25.000 novos doutorados por ano, mas um doutoramento não é um handicap no mundo empresarial alemão. Muitos dos melhores alunos optam por fazer um doutoramento, apenas para terem a oportunidade única de realizar um trabalho perfeito e profundo, e fazerem avançar a universidade, mas depois vão directamente trabalhar em empresas. Isto porque todos os doutorados, até mesmo os doutorados em áreas mais abstractas – em matemática e em física – acabam por ser úteis nas empresas.
Bolsas em todas as áreas
Dizem-me os meus colegas alemães que cada professor universitário tem automaticamente, de uma forma inerente, atribuídas duas bolsas de doutoramento (ou de pós-doutoramento) para oferecer aos seus alunos. Estas são as bolsas de doutoramento mais tradicionais, atribuídas directamente pelas universidades, existentes em todas as possíveis áreas da ciência e da tecnologia. Para além disso, há ainda financiamento (de diversas agências) para os professores dos grupos mais produtivos cientificamente, ou de áreas estratégicas, concorrerem a programas de alguns milhões de euros e poderem atribuir mais bolsas a alunos.
Em Portugal, o Governo ignorou que todos os professores e todas as áreas são importantes para uma ciência e tecnologia sólidas, e decidiu concentrar praticamente todas as bolsas em programas doutorais muito específicos, que julga terem “mais qualidade”. Estes programas doutorais do Governo (cada programa doutoral aprovado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, dedicado a um tema particular, recebe dezenas bolsas de doutoramento) estão a deixar de fora as áreas principais investigadas nas universidades, e estão a criar um terramoto no sistema das universidades portuguesas. A maioria dos grupos de investigação fica sem financiamento e sem alunos de doutoramento. O sistema está a patinar, pois:
– Falta fazer o trabalho de base, mantendo todas as áreas da ciência e tecnologia bem activas, porque são todas importantes para a academia e para as empresas;
– Os programas doutorais que supostamente seriam “de qualidade” são mal seleccionados por existirem falhas graves nos critérios, nos procedimentos e nos júris.
Critérios e júris
Os critérios da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) estão a falhar por terem requisitos demasiado permissivos, o que aumenta a arbitrariedade na atribuição de bolsas. Por exemplo, a cada candidato a bolsa de pós-doutoramento da FCT, pede-se apenas que tenha um artigo publicado numa revista científica, mesmo que tenha feito o doutoramento há mais de três anos. Há uns anos disse-me um colega espanhol: “Aqui em Espanha um candidato recém-doutorado, que tenha publicado menos de oito artigos científicos de qualidade, nem sequer é considerado pelo júri, porque só consideramos candidatos fora de série.” Ou seja, os critérios portugueses permitem a mediocridade e frequentemente os melhores candidatos, os fora de série, não obtêm bolsa enquanto alguns candidatos bem mais fracos têm sorte.
Outro exemplo de mediocridade é o júri escolhido pela FCT para atribuir programas doutorais. Na grande área da física a que pertenço, no painel do ano passado havia apenas um jurado. Ele era especialista numa área a meio caminho entre a física e a biomédica. Era responsável por avaliar todos os programas doutorais para a física, com um valor de dezenas de milhões de euros. Como seria de esperar, fez um julgamento sumário, dando demasiado valor a aspectos irrelevantes.
Isto não se passa na Alemanha, onde os júris são muito rigorosos e consistentes a tomar as suas decisões. Por exemplo, neste momento na Universidade de Frankfurt onde me encontro, está em decisão a atribuição de um financiamento de dez milhões de euros. O tópico é estratégico, pois desenvolve investigação relacionada com o futuro grande acelerador de partículas alemão, a para Investigação de Antiprotões e Iões, que está a ser desenvolvido em Darmstadt. Esse projecto tem o objectivo de financiar bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento, missões, computadores e visitas de consultores (como eu). Mas apesar de se tratar de um financiamento comparável ao de um programa doutoral apenas do Governo português, está a ser decidido por um júri internacional do mais alto nível. O júri é composto por especialistas do mesmo tópico (não de um tópico desconexo do tópico a financiar), que inclui por exemplo o director de um grande laboratório nacional norte-americano. Este júri está a entrevistar muitos investigadores, desde os professores mais eminentes aos alunos que estão a iniciar o doutoramento.
Relações entre universidades e empresas
Outra questão importante é a dos doutoramentos nas empresas. Em Portugal, o Governo diz que grande parte dos doutoramentos deve passar a ser feito nas empresas. Isto pode funcionar nalguns casos particulares, mas no geral é muito difícil. Ao contrário das universidades, as empresas não estão vocacionadas para organizar doutoramentos.
Segundo os meus colegas na Alemanha, um professor que realize trabalho tecnológico ou de consultoria relevante para alguma empresa pode receber dessa empresa até um milhão de euros por ano sem perder o seu vínculo com a universidade. Isto ocorre frequentemente, por exemplo com a indústria automóvel, e cria pontes fortíssimas entre as empresas e a universidade. As próprias empresas querem que as universidades sejam fortes. Os pagamentos das empresas às universidades permitem não só que alguns professores possam ter excelentes salários como financiam ainda muitas bolsas de doutoramentos, não nas empresas, mas sim nas universidades.
O Governo português quer ainda que muitas mais patentes industriais sejam produzidas nas universidades. Realmente as universidades conseguem ter know-how para fazer muitas patentes, e até é bom que lancem muitas patentes para aproveitarem a criatividade dos professores e alunos. Mas é difícil prever qual dessas patentes frutificará, pois as universidades não são empresas industriais. E presentemente as universidades portuguesas têm poucos recursos financeiros para defender patentes internacionais. Disse-me um amigo, director de uma grande empresa bastante tecnológica: “A minha empresa não quer que as universidades façam patentes, primeiro porque nós é que sabemos quais são as patentes que precisamos; se precisamos de uma patente, fazemo-la nós. Em segundo lugar, nunca compramos patentes às universidades, essas patentes só nos empatam.”
Para concluir, estamos a gastar muito dinheiro com programas muito ambiciosos. Mas a atribuição do financiamento é pouco rigorosa. E não sobra financiamento para muitas áreas e tópicos, o que está a deixar em grandes dificuldades a maioria da ciência e tecnologia portuguesas. É uma crítica que ouço da parte de muitos colegas portugueses de todas as áreas.
Que tal se o financiamento de Governo para a ciência fosse maioritariamente para as universidades e os laboratórios do Estado fazerem o seu trabalho de investigação e de desenvolvimento em todas as áreas da ciência e tecnologia, um trabalho honesto, consistente e de qualidade? Se não houver financiamento para cada professor ou investigador poder orientar dois ou mais alunos de doutoramento, pelo menos os professores com um bom currículo deveriam poder gerir uma bolsa. E que tal se o Governo facilitasse a abertura de canais directos entre as empresas e as universidades, em vez de financiar programas público-privados complicados e burocráticos? Só depois de estes dois mecanismos básicos funcionarem pode frutificar o apoio de programas específicos. Por favor deixem a academia e os jovens trabalharem para melhorar a nossa ciência, a nossa tecnologia, a nossa economia e o nosso futuro.
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10 hábitos de casais felizes
A saber:
1. Vão para a cama ao mesmo tempo
2. Cultivam interesses comuns
3. Andam de mãos dadas ou lado a lado
4. Adotam um padrão de confiança e perdão
5. Valorizam mais o que se faz certo do que aquilo que se faz errado
6. Abraçam-se, logo que se encontram depois do trabalho
7. Dizem "amo-te" e "bom dia" todas as manhãs, ou melhor: Eu amo-te hoje!
8. Dizem "Boa noite", todas as noites, independentemente de como se sentem
9. Fazem um "intervalo" durante o dia
10. Têm orgulho de serem vistos juntos
Mais informação:
http://www.hipercurioso.com/10-habitos-de-casais-felizes/
1. Vão para a cama ao mesmo tempo
2. Cultivam interesses comuns
3. Andam de mãos dadas ou lado a lado
4. Adotam um padrão de confiança e perdão
5. Valorizam mais o que se faz certo do que aquilo que se faz errado
6. Abraçam-se, logo que se encontram depois do trabalho
7. Dizem "amo-te" e "bom dia" todas as manhãs, ou melhor: Eu amo-te hoje!
8. Dizem "Boa noite", todas as noites, independentemente de como se sentem
9. Fazem um "intervalo" durante o dia
10. Têm orgulho de serem vistos juntos
Mais informação:
http://www.hipercurioso.com/10-habitos-de-casais-felizes/
2014-05-18
650 Anos da Universidade de Cracóvia
JOÃO CARLOS ESPADA Público, 12/05/2014
As universidades americanas são apenas universidades europeias que vivem do outro lado do Atlântico.
Durante três dias intensivos, de sexta a domingo, a Universidade Jagielloniana de Cracóvia celebrou 650 anos. Representantes de dezenas de universidades europeias, americanas e asiáticas participaram no programa. Foi uma rara oportunidade para celebrar a ideia de universidade e explorar a intrigante natureza de uma das mais antigas instituições europeias que ainda hoje perdura.
A Universidade de Copérnico e de João Paulo II foi fundada em 1364. Mantém desde essa época o lema Plus Ratio Quam Vis, a razão acima da força, ou do poder. Este foi aliás o lema gravado na Medalha de Ouro atribuída ao único político agraciado na cerimónia, o presidente da Comissão Europeia, o português José Manuel Durão Barroso.
Plus Ratio Quam Vis é uma excelente expressão da ideia de universidade, tal como ela emergiu, sem ser planeada, da tradição grega e cristã. Foi esta ideia que discutimos na passada sexta-feira em Cracóvia, num debate promovido pelo Europaeum, um consórcio que reúne dez das mais antigas universidades europeias, e que obviamente se associou aos festejos dos 650 anos da Jagielloniana.
No centro desta ideia de universidade está a busca desinteressada do saber. Acreditamos que muitas consequências positivas advirão dessa busca, mas não são essas consequências que justificam ou norteiam a busca do saber. A busca do saber justifica-se a si mesma pelo encanto de perguntar, de admirar o desconhecido, de reconhecer o mistério não desvendado. Michael Oakeshott descreveu memoravelmente esta ideia de universidade:
"A dádiva da universidade é a dádiva de um intervalo. (...) Aqui está um intervalo no tirânico curso de eventos irreparáveis; um período no qual podemos olhar para o mundo e para nós próprios sem o sentimento de ter um inimigo pelas costas ou a pressão insistente para tomar uma decisão ou tomar partido; um momento no qual podemos experimentar o mistério sem ter a necessidade de imediatamente ter de encontrar uma solução. E tudo isto, não num vácuo intelectual, mas rodeados por toda a herdada aprendizagem, literatura e experiência da nossa civilização; não sozinhos, mas na companhia de espíritos congéneres; não como uma ocupação solitária, mas em combinação com a disciplina de estudo de uma área reconhecida do saber."
A autonomia e a independência são as cruciais condições para poder manter este "espírito de intervalo" que Oakeshott atribui à universidade. Ao longo dos séculos, as universidades lutaram arduamente, e recorrendo a todo o tipo de estratagemas, para tentar preservar a sua autonomia e independência. A Universidade Jagielloniana de Cracóvia não foi excepção e deu seguramente grandes exemplos. Foi durante muitos séculos lar do patriotismo polaco, perseguido pelas várias potências ocupantes, a Prússia, a Áustria e a Rússia. No século XX, resistiu aos fundamentalismos rivais nacional-socialista e comunista.
Neste fim-de-semana, ao admirarmos a beleza dos velhos edifícios centenários da Jagielloniana, interrogamo-nos sobre essa força interior de autonomia e independência que define a universidade desde os primórdios. Estará ela ainda presente entre nós? Não estaremos ameaçados pela dependência crescente do financiamento estatal e da crescente regulamentação burocrática? Este foi sem dúvida o alerta dominante que soou na belíssima Aula do Collegium Maius de Cracóvia.
Paradoxalmente, talvez seja nas mais jovens universidades norte-americanas que possamos encontrar inspiração para preservar a ancestral independência da universidade. O seu traço distintivo é a variedade: muitas são privadas, outras estatais, outras religiosas. Todas cobram propinas, oferecendo bolsas de estudo a quem precisa e merece, e todas recorrem a diversas fontes de financiamento. Talvez não por acaso, são as universidades americanas que ocupam os primeiros lugares dos inúmeros rankings internacionais.
Em bom rigor, não existe um sistema americano de universidade. Existem vários sistemas descentralizados. Nessa variedade, encontra-se o ancestral mistério das universidades europeias – que foram resultado de uma cultura comum, mas não de um plano comum. As universidades americanas são por isso apenas universidades europeias que vivem do outro lado do Atlântico. Elas são as nossas sobrinhas mais novas que respeitosamente se reuniram a nós em Cracóvia, neste último fim-de-semana. Em conjunto, celebrámos esse misterioso espírito da universidade europeia, que insiste em perdurar: Plus Ratio Quam Vis.
As universidades americanas são apenas universidades europeias que vivem do outro lado do Atlântico.
Durante três dias intensivos, de sexta a domingo, a Universidade Jagielloniana de Cracóvia celebrou 650 anos. Representantes de dezenas de universidades europeias, americanas e asiáticas participaram no programa. Foi uma rara oportunidade para celebrar a ideia de universidade e explorar a intrigante natureza de uma das mais antigas instituições europeias que ainda hoje perdura.
A Universidade de Copérnico e de João Paulo II foi fundada em 1364. Mantém desde essa época o lema Plus Ratio Quam Vis, a razão acima da força, ou do poder. Este foi aliás o lema gravado na Medalha de Ouro atribuída ao único político agraciado na cerimónia, o presidente da Comissão Europeia, o português José Manuel Durão Barroso.
Plus Ratio Quam Vis é uma excelente expressão da ideia de universidade, tal como ela emergiu, sem ser planeada, da tradição grega e cristã. Foi esta ideia que discutimos na passada sexta-feira em Cracóvia, num debate promovido pelo Europaeum, um consórcio que reúne dez das mais antigas universidades europeias, e que obviamente se associou aos festejos dos 650 anos da Jagielloniana.
No centro desta ideia de universidade está a busca desinteressada do saber. Acreditamos que muitas consequências positivas advirão dessa busca, mas não são essas consequências que justificam ou norteiam a busca do saber. A busca do saber justifica-se a si mesma pelo encanto de perguntar, de admirar o desconhecido, de reconhecer o mistério não desvendado. Michael Oakeshott descreveu memoravelmente esta ideia de universidade:
"A dádiva da universidade é a dádiva de um intervalo. (...) Aqui está um intervalo no tirânico curso de eventos irreparáveis; um período no qual podemos olhar para o mundo e para nós próprios sem o sentimento de ter um inimigo pelas costas ou a pressão insistente para tomar uma decisão ou tomar partido; um momento no qual podemos experimentar o mistério sem ter a necessidade de imediatamente ter de encontrar uma solução. E tudo isto, não num vácuo intelectual, mas rodeados por toda a herdada aprendizagem, literatura e experiência da nossa civilização; não sozinhos, mas na companhia de espíritos congéneres; não como uma ocupação solitária, mas em combinação com a disciplina de estudo de uma área reconhecida do saber."
A autonomia e a independência são as cruciais condições para poder manter este "espírito de intervalo" que Oakeshott atribui à universidade. Ao longo dos séculos, as universidades lutaram arduamente, e recorrendo a todo o tipo de estratagemas, para tentar preservar a sua autonomia e independência. A Universidade Jagielloniana de Cracóvia não foi excepção e deu seguramente grandes exemplos. Foi durante muitos séculos lar do patriotismo polaco, perseguido pelas várias potências ocupantes, a Prússia, a Áustria e a Rússia. No século XX, resistiu aos fundamentalismos rivais nacional-socialista e comunista.
Neste fim-de-semana, ao admirarmos a beleza dos velhos edifícios centenários da Jagielloniana, interrogamo-nos sobre essa força interior de autonomia e independência que define a universidade desde os primórdios. Estará ela ainda presente entre nós? Não estaremos ameaçados pela dependência crescente do financiamento estatal e da crescente regulamentação burocrática? Este foi sem dúvida o alerta dominante que soou na belíssima Aula do Collegium Maius de Cracóvia.
Paradoxalmente, talvez seja nas mais jovens universidades norte-americanas que possamos encontrar inspiração para preservar a ancestral independência da universidade. O seu traço distintivo é a variedade: muitas são privadas, outras estatais, outras religiosas. Todas cobram propinas, oferecendo bolsas de estudo a quem precisa e merece, e todas recorrem a diversas fontes de financiamento. Talvez não por acaso, são as universidades americanas que ocupam os primeiros lugares dos inúmeros rankings internacionais.
Em bom rigor, não existe um sistema americano de universidade. Existem vários sistemas descentralizados. Nessa variedade, encontra-se o ancestral mistério das universidades europeias – que foram resultado de uma cultura comum, mas não de um plano comum. As universidades americanas são por isso apenas universidades europeias que vivem do outro lado do Atlântico. Elas são as nossas sobrinhas mais novas que respeitosamente se reuniram a nós em Cracóvia, neste último fim-de-semana. Em conjunto, celebrámos esse misterioso espírito da universidade europeia, que insiste em perdurar: Plus Ratio Quam Vis.
2014-04-29
Decálogo da Quotidianeidade
Ângelo Giuseppe Roncalli - SÃO JOÃO XXIII
i - Procurarei viver pensando apenas no dia de hoje, exclusivamente neste dia, sem querer resolver todos os problemas da minha vida de uma só vez.
ii - Hoje, apenas hoje, procurarei ter o máximo cuidado na minha convivência, cortês nas minhas maneiras, a ninguém criticarei, nem pretenderei melhorar ou corrigir à força ninguém, senão a mim mesmo.
iii - Hoje, apenas hoje, serei feliz. Na certeza de que fui criado para a felicidade, não só no outro mundo, mas também já neste.
iv - Hoje, apenas hoje, adaptar-me-ei às circunstâncias, sem pretender que sejam todas as circunstâncias a se adaptarem aos meus desejos.
v - Hoje, apenas hoje, dedicarei 10 minutos do meu tempo a uma boa leitura, recordando que assim como o alimento é necessário para a vida do corpo, a boa leitura é necessária para a vida da alma.
vi - Hoje, apenas hoje, farei uma boa acção, e não direi a ninguém.
vii - Hoje, apenas hoje, farei ao menos uma coisa que me custe fazer, e se me sentir ofendido nos meus sentimentos, procurarei que ninguém o saiba.
viii - Hoje, apenas hoje, executarei um programa pormenorizado, talvez não o cumpra perfeitamente, mas ao menos escrevê-lo-ei, e fugirei de dois males, a pressa e a indecisão.
ix - Hoje, apenas hoje, acreditarei firmemente, embora as circunstâncias mostrem o contrário, que a Providência de Deus se ocupa de mim, como se não existisse mais ninguém no mundo.
x - Hoje, apenas hoje, não terei nenhum temor, de modo especial não terei medo de gozar o que é belo, e de crer na bondade.
posso bem fazer por doze horas
aquilo que me atormentaria
se pensasse ter que fazê-lo por toda a vida
Fonte: http://www.papagiovanni.com/sito/pensiero/giornale-dell-anima.html
i - Procurarei viver pensando apenas no dia de hoje, exclusivamente neste dia, sem querer resolver todos os problemas da minha vida de uma só vez.
ii - Hoje, apenas hoje, procurarei ter o máximo cuidado na minha convivência, cortês nas minhas maneiras, a ninguém criticarei, nem pretenderei melhorar ou corrigir à força ninguém, senão a mim mesmo.
iii - Hoje, apenas hoje, serei feliz. Na certeza de que fui criado para a felicidade, não só no outro mundo, mas também já neste.
iv - Hoje, apenas hoje, adaptar-me-ei às circunstâncias, sem pretender que sejam todas as circunstâncias a se adaptarem aos meus desejos.
v - Hoje, apenas hoje, dedicarei 10 minutos do meu tempo a uma boa leitura, recordando que assim como o alimento é necessário para a vida do corpo, a boa leitura é necessária para a vida da alma.
vi - Hoje, apenas hoje, farei uma boa acção, e não direi a ninguém.
vii - Hoje, apenas hoje, farei ao menos uma coisa que me custe fazer, e se me sentir ofendido nos meus sentimentos, procurarei que ninguém o saiba.
viii - Hoje, apenas hoje, executarei um programa pormenorizado, talvez não o cumpra perfeitamente, mas ao menos escrevê-lo-ei, e fugirei de dois males, a pressa e a indecisão.
ix - Hoje, apenas hoje, acreditarei firmemente, embora as circunstâncias mostrem o contrário, que a Providência de Deus se ocupa de mim, como se não existisse mais ninguém no mundo.
x - Hoje, apenas hoje, não terei nenhum temor, de modo especial não terei medo de gozar o que é belo, e de crer na bondade.
posso bem fazer por doze horas
aquilo que me atormentaria
se pensasse ter que fazê-lo por toda a vida
Fonte: http://www.papagiovanni.com/sito/pensiero/giornale-dell-anima.html
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