2014-02-25

Filhos únicos

Natália Faria

Público | 17/02/2014

Em 2013, Portugal voltou a registar uma quebra recorde em termos de natalidade: nasceram apenas 82.538 crianças, muitos dos quais permanecerão como "filhos únicos" e provavelmente superprotegidos. Lá fora, a chegada destes miúdos ao mercado de trabalho já suscita inquietações

Portugal bateu um novo recorde negativo em termos de natalidade. Em 2013 nasceram 82.538 crianças, menos 7303 do que no ano anterior, segundo os números do Instituto Nacional Doutor Ricardo Jorge. Em 2012 o país já tinha registado um saldo natural negativo sem precedentes, com menos 17.757 nascimentos do que mortes. Quanto aos óbitos de 2013, o Instituto Nacional de Estatística (INE) ainda não disponibilizou números totais, mas, entre Janeiro e Outubro do ano passado, os números evidenciavam já um saldo natural negativo de 18.232 pessoas. São dados que traduzem uma realidade que já não faz manchetes: os portugueses têm menos filhos, o país deixou de garantir a substituição das gerações, a população envelhece a olhos vistos. Por detrás deles, emerge, porém, uma outra realidade que começa a preocupar pediatras e psicólogos: a superprotecção das crianças, sobretudo dos filhos únicos, e a sua consequente impreparação para o mundo real quando chegam a adultos.

"Quando estes miúdos chegam ao mercado de trabalho (…) exigem tarefas bem definidas e um constante feedback (…). E é muito difícil dar-lhes umfeedback negativo sem esmagar os seus egos", lamenta-se o empresário e escritor norte-americano Bruce Tulgan, autor do livro Not Everyone Gets a Trophy, citado num artigo da revista norte-americana The Atlantic.

Na publicação, não faltam patrões a denunciar as dificuldades em empregar jovens com pouco mais de 20 anos de idade: "Eles precisam que tudo seja soletrado e exigem ser carregados ao colo", aponta um. Será, conclui-se no artigo, o resultado de terem crescido sempre com alguém — os pais, mas também professores — a monitorizar todos os aspectos da sua vida e de terem crescido como pequenos príncipes.

Se em Portugal o fenómeno ainda não é tão visível é porque o país chegou mais tarde ao problema demográfico. Afinal, como recorda o historiador Manuel Loff, "os anos de 1975 a 1976 foram os de maior nupcialidade, se não de toda a história do século XX pelo menos desde o final da II Guerra Mundial, e essa nupcialidade gerou a mais alta natalidade também".

Em 1976, por exemplo, nasceram 186.712 crianças. Aqui, "além do impulso optimista típico dos períodos de libertação", concorreram factores como o regresso dos 250 mil soldados que estavam nas trincheiras africanas e dos cerca de 200 mil emigrantes que tinham partido para a Europa, além dos quase meio milhão de retornados.

Mas os efeitos da quebra de natalidade que se seguiu ("não só por causa da crise económica, que tem no segundo resgate do FMI os piores anos, mas também porque as mulheres começaram entretanto a aceder a meios de contracepção e a poder programar autonomamente a sua vida", como recorda ainda Loff) começam já a ecoar nos consultórios portugueses.

"Posso, quero e mando"
"Nas famílias, o facto de se ter só um filho pode levar a uma concentração das expectativas nessa criança, passando a ser, não apenas o alvo de todas as atenções, como aquela que terá de ser tudo aquilo que os pais foram, desejavam ser ou querem que ela seja. Por outro lado, também há uma concentração dos bens materiais, o que pode levar a estimular, na criança, a parte narcísica e omnipotente do 'posso, quero e mando' ou do 'quero tudo, já, porque eu sou eu e tenho direito a tudo', que mais tarde causará graves problemas, não só à pessoa em causa mas aos que a rodearem", alerta o pediatra Mário Cordeiro

O especialista ressalva, porém, que "é possível ser-se filho único e não se ser 'estragado', pretensioso, arrogante, narcísico e omnipotente". Tudo depende "do modelo educativo e dos exemplos parentais e das figuras de referência".

O problema incide assim na pressão que se criou em torno da parentalidade e do lugar da criança na família. "Assistimos a uma idealização da criança que não existia no passado, em que os filhos vinham como vinham e eram quem eram. Hoje, estamos muito menos expostos à infância, ou seja, vive-se com muito menos crianças à volta. E as que existem vivem em quotidianos de quase Big Brother, sempre debaixo do olhar de adultos quase escolhidos a dedo e quase sem espaço para uma brincadeira que não seja formatada pelos adultos e controlada pelos adultos", observa Vanessa Cunha, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Ora, se se recusa às crianças a possibilidade de "aprender caindo, é natural que se caminhe para uma geração de adultos com dificuldade em gerir adversidades".

Pressão sobre os pais
Nada que surpreenda numa sociedade em que as famílias são cada vez mais verticais. "Há muitos adultos, pais, tios e avós, para poucas crianças", descreve Vanessa Cunha. Dos 89.841 bebés nascidos em 2012, 48.766 eram primeiros filhos. E se, de entre os bebés nascidos nesse mesmo ano, os segundos filhos ainda eram significativos (30.499), os terceiros filhos caíam drasticamente para os 7730.

Pior: "Não apenas ao nível das famílias há poucas crianças, como estas têm poucos primos – os pais também já pertencem a uma geração de poucos irmãos —, há poucas crianças nos prédios e a vida faz-se menos em 'espírito de aldeia', comunitário, mas muito fechado entre quatro paredes, seja de casa, do automóvel ou dos próprios infantários e escolas", acrescenta Mário Cordeiro.

Quanto às razões para os casais recearem o salto para o segundo filho, todos de acordo. "Questões financeiras e de conciliação do trabalho com a vida familiar adiam ou levam mesmo à recusa da transição para o segundo filho", aponta Vanessa Cunha. Àquelas somam-se motivos latentes. "A parentalidade de per si passou a ser um problema e a estar debaixo de uma forte normatividade. Antigamente, ser pai ou ser mãe era algo que se aprendia com a geração anterior e as pessoas não viviam angustiadas porque tinham dado uma palmada ao filho. Hoje, há informação, pediatras, revistas da especialidade, psicólogos e toda uma camada de profissionais ligados à infância que estão sempre a colocar condições e exigências que levam as pessoas a sentirem que ser bom pai ou boa mãe é uma missão quase impossível", defende a socióloga. E se ao segundo filho "as pessoas começam a relativizar tudo isso, porque percebem que face aos mesmos inputs saem filhos diferentes, quando não se passa do primeiro estas coisas continuam muito empoladas".

Tome-se como exemplo o crónico problema da falta de tempo dos pais. "É algo que na verdade sempre existiu. Dantes, as mães não se sentavam a fazer desenhos ou pinturas com os filhos e hoje fazem-no. A diferença é que agora nas entrevistas surgem pessoas que não querem ser pais, ou não querem partir para o segundo filho, porque não se sentem capazes de o fazer nem se sentem preparadas para a grande dose de sacrifício pessoal que sentem que têm que fazer em prol da criança."

Superprotecção
Raciocínios deste tipo seriam impensáveis sem as transformações ocorridas na sociedade portuguesa nas últimas décadas. Manuel Loff recua até aos seus tempos de estudante: "Acabei a 4.ª classe em 1974, numa escola masculina de bairro camarário, onde era normal, quando vinha a Primavera, um terço dos meus colegas faltarem porque iam trabalhar para as obras."

E mesmo nos anos 80 a concepção da identidade das crianças e do seu papel social ainda incluía o seu dever de contribuir para o orçamento familiar — por exemplo, em regiões como o Minho, onde o trabalho infantil era proporcionalmente inverso à taxa de escolarização. "O aumento global da escolaridade, a melhoria das condições de planeamento familiar e uma perspectiva muito diferente do papel da mulher só depois se conjugaram para permitir que triunfasse o conceito romântico de família, típico do século XIX, e que implica um grande investimento na educação dos filhos como representação dos sonhos e aspirações dos pais, com estes a serem capazes de proteger o bem-estar dos filhos mesmo que isso implique sacrificarem o seu próprio bem-estar, até chegarmos a este extremo de superprotecção das crianças e dos adolescentes, num mundo em que a competição é cada vez mais dura."

Sem querer assumir-se como "profeta da desgraça", Mário Cordeiro lembra que o preço a pagar pode ser mais elevado do que se pensa. "Temos a obrigação de exigir políticas concertadas, maior atenção à infância e uma perspectiva desta, não apenas na actualidade e no presente, mas projectando-a no futuro. Foi o que fizeram os países mais evoluídos, como os nórdicos, na sequência da II Grande Guerra e da fragmentação do tecido social que esta causou."

2014-02-12

A arte da associação

Sobre os quadros de Miró e a tolerância

João Carlos Espada | Público | 10/02/2014

A "arte de associação" exprime e estimula uma cultura cívica de iniciativa, variedade e tolerância.
Já quase tudo terá sido dito sobre a magna questão da venda ou não venda dos agora célebres 85 quadros de Miró. Um ponto, todavia, pode talvez ser acrescentado: por que razão não surgiu um vasto movimento de donativos para comprar os referidos quadros?

Já quase tudo terá sido dito sobre a magna questão da venda ou não venda dos agora célebres 85 quadros de Miró. Um ponto, todavia, pode talvez ser acrescentado: por que razão não surgiu um vasto movimento de donativos para comprar os referidos quadros?Ouvimos incessantes declarações inflamadas sobre a decisiva importância cultural de manter os quadros em Portugal. A acreditar nas reportagens dos jornais, rádios e televisões, um vastíssimo número de portugueses seria indubitavelmente a favor de manter a colecção entre nós. A ser assim, seria natural que tivesse emergido um poderoso movimento de pequenos, médios e maiores donativos com vista a adquirir a colecção, ou, pelo menos, parte dela. Tanto quanto sei, esse movimento não existiu e a proposta não foi sequer mencionada. Este fenómeno dá que pensar e merece ser pensado.
Subjacente a este paradoxo — tanta gente acha urgente manter os quadros em Portugal, mas ninguém quer contribuir para os comprar — está uma cultura política profundamente estatista. Tudo o que é importante deve ser pago pelo Estado, isto é, pelo dinheiro dos contribuintes alocado por decisões políticas. Em contrapartida, aqueles que consideram importante promover um determinado objectivo nunca se lembram de serem eles próprios a tentar promovê-lo.

Não é difícil encontrar inúmeros exemplos recentes desta atitude estatista. Nos últimos meses, assistimos a um regresso do estilo revolucionário do PREC a propósito do famoso "corte brutal" das bolsas da FCT. Mas não ouvimos qualquer proposta para diminuir a dependência das instituições de investigação relativamente a verbas governamentais. Também as universidades protestam contra a redução da sua parte do Orçamento do Estado. Mas também não ouvimos qualquer proposta para aumentar as receitas próprias, designadamente através do aumento das propinas — as actualmente cobradas são puramente simbólicas — e da criação de um vasto sistema de bolsas de estudo para quem precisasse.
Vários analistas observaram certeiramente que esta atitude gera um despesismo estatal que tem estado na base da irresponsabilidade das nossas finanças públicas. Essa irresponsabilidade não é fruto exclusivo da irresponsabilidade dos políticos. É em grande parte produto do clima geral do país, em que cada interesse ou opinião particular exige do Estado o respectivo financiamento.

Mas há outra dimensão, porventura mais grave, desta irresponsabilidade estatista: ela conduz à radicalização sectária da vida política e ameaça a tolerância indispensável à vida democrática — ameaça o apropriadamente designado princípio de live and let live.
Se tudo o que é importante devesse ser financiado pelo Estado, é fácil perceber que não haveria dinheiro para financiar tudo. Isso significa que escolhas mutuamente exclusivas criariam um jogo de soma nula ou mesmo negativa: o que uns ganham será o que os outros perdem. A luta pela captura de rubricas no Orçamento do Estado tornar-se-ia uma questão de vida ou de morte para indivíduos, instituições e modos de vida dependentes exclusivamente das verbas do Estado.

Vários autores sugerem que as cíclicas crises das democracias continentais, designadamente entre as duas grandes guerras do século XX, tiveram aqui um poderoso factor explicativo. Guerras civis de classes foram geradas em torno da captura de dinheiros públicos. Quando esses dinheiros escasseiam, facções subsidiadas rivais acusam-se mutuamente e sem quartel. O espaço público das regras de civilidade e fair-play definha, até que um ditador de um dos lados toma o poder para calar o outro lado.

Tocqueville captou este problema antes de tempo, na década de 1830, e observou a solução que espontaneamente emergira na América: a sociedade civil, ou a "arte de associação dos americanos". Disse ele: "Os americanos associam-se para dar festas, fundar seminários, construir albergues, erguer igrejas, divulgar livros, enviar missionários para os antípodas; e é também assim que criam hospitais, prisões e escolas. Desde que se trate de evidenciar uma verdade ou desenvolver um sentimento através de um grande exemplo, ei-los que se associam. Sempre que, à cabeça de um novo empreendimento, possais ver em França o Governo e em Inglaterra um aristocrata, podeis estar certos de que nos Estados Unidos encontrareis uma associação".

É importante perceber as consequências desta "arte de associação". Elas não residem apenas em aliviar a pressão sobre o Orçamento do Estado. A "arte de associação" exprime e estimula uma cultura cívica de iniciativa, variedade e tolerância. Muitas iniciativas diferentes, frequentemente rivais, podem florescer e coabitar sem guerra civil — isso é possível porque basicamente cada uma depende dos seus próprios apoiantes, não da imposição coerciva sobre os impostos e a opinião dos outros.

2014-02-10

Adeus Luís

Faleceu o nosso querido amigo, Luís Seabra Duque, um dos inesquecíveis 'baby singers' do nosso casamento.


Até breve!