ORAÇÃO COLECTA
Senhor Deus, que unis os corações dos fiéis num único desejo, fazei que o vosso povo ame o que mandais e espere o que prometeis,
para que, no meio da instabilidade deste mundo, fixemos os nossos corações onde se encontram as verdadeiras alegrias.
Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.
2014-08-26
2014-08-25
A minha família é a minha casa
José Luís Nunes Martins ionline 2014.08.18
Numa família há afeto e exemplo, há limites e respeito, há quem nos aceite como somos sem deixar de nos animar a sermos melhores, sem excessos mas com a paciência de quem ama
A solidão absoluta é não ter ninguém a quem dizer um simples: "tenho vontade de chorar". Não precisamos de muito para viver bem – para ser feliz basta uma família e pouco mais.
A família é a casa e a paz. O refúgio onde uma vontade de chorar não é motivo de julgamento, apenas e só uma necessidade súbita de... família. De um equilíbrio para o qual o outro é essencial... assim também se passa com a vontade de sorrir que, em família, se contagia apenas pelo olhar.
Nos dias de hoje vai sendo cada vez mais difícil encontrar gente capaz de ser família. Os egoísmos abundam e cultiva-se, sozinho, o individual. Como se não houvesse espaço para o amor. Dizem que amar é arriscado, que é coisa de loucos...
Todos temos sentimentos mais profundos. Cada um de nós é uma unidade, mas o que somos passa por sermos mais do que um. Parte de unidades maiores. Estamos com quem amamos e quem amamos também está, de alguma forma, connosco. O amor é o que existe entre nós e nos enlaça os sentimentos mais profundos. Onde uma vontade de chorar é um sinal de que há algo em mim que é maior do que eu... por vezes, nem preciso de chorar.... apenas a vontade me indica o caminho da humildade e do amor. Sozinho não consigo chegar a ser eu...
Uma verdadeira família é simples. É o lugar onde todos amam e protegem a intimidade de cada um. Ninguém é de uma família à qual não se entrega. Mas não é fácil, nunca. É preciso ser forte o suficiente para dizer não a um conjunto enorme de coisas que parecem muito valiosas, mas que não passam de ocas aparências de valor.
Há muita gente que gosta de complicar para fugir ao que é simples. Para que me serve um palácio se nele a minha solidão se faz ainda maior? Quantos desistem de lutar pelo amor com a desculpa de que o preço é alto e o prémio pode afinal não valer o esforço? Quantas vezes a falta de amor é vista como paz?
A família é algo simples – puro – mas muitíssimo difícil de alcançar. Implica a renúncia constante aos artifícios do fácil e do imediato. Exige que nos concentremos num caminho longo que acreditamos (sem grandes provas) que é o único que nos pode elevar e levar ao céu.
Numa família há afeto e exemplo, há limites e respeito, há quem nos aceite como somos sem deixar de nos animar a sermos melhores, sem excessos mas com a paciência de quem ama.
A paz resulta de um equilíbrio de elementos diferentes, com talentos e perspetivas distintos. Não através de um esforço de anulação do que é único de cada um, mas precisamente pela riqueza de o orientar rumo a um fim conjunto e harmonioso. Uma espécie de enriquecimento recíproco dos contrários. Promover o bem do outro não é fazer com que se torne semelhante a mim.
A minha casa é o lugar onde eu sou o outro a quem alguém pode expressar o seu "tenho vontade de chorar" sem que eu trace juízos de qualquer espécie, e que lhe faça sentir com o meu silêncio, dedicação e presença que a sua vontade já não é só sua... mas minha também.
A minha família é a minha casa. Até podemos ser apenas dois... mas é aí, e só aí, que posso ser feliz. Longe de casa estou sempre a caminho. O meu coração não descansa senão nos braços de quem tem vontade de sorrir e de chorar comigo.
Numa família há afeto e exemplo, há limites e respeito, há quem nos aceite como somos sem deixar de nos animar a sermos melhores, sem excessos mas com a paciência de quem ama
A solidão absoluta é não ter ninguém a quem dizer um simples: "tenho vontade de chorar". Não precisamos de muito para viver bem – para ser feliz basta uma família e pouco mais.
A família é a casa e a paz. O refúgio onde uma vontade de chorar não é motivo de julgamento, apenas e só uma necessidade súbita de... família. De um equilíbrio para o qual o outro é essencial... assim também se passa com a vontade de sorrir que, em família, se contagia apenas pelo olhar.
Nos dias de hoje vai sendo cada vez mais difícil encontrar gente capaz de ser família. Os egoísmos abundam e cultiva-se, sozinho, o individual. Como se não houvesse espaço para o amor. Dizem que amar é arriscado, que é coisa de loucos...
Todos temos sentimentos mais profundos. Cada um de nós é uma unidade, mas o que somos passa por sermos mais do que um. Parte de unidades maiores. Estamos com quem amamos e quem amamos também está, de alguma forma, connosco. O amor é o que existe entre nós e nos enlaça os sentimentos mais profundos. Onde uma vontade de chorar é um sinal de que há algo em mim que é maior do que eu... por vezes, nem preciso de chorar.... apenas a vontade me indica o caminho da humildade e do amor. Sozinho não consigo chegar a ser eu...
Uma verdadeira família é simples. É o lugar onde todos amam e protegem a intimidade de cada um. Ninguém é de uma família à qual não se entrega. Mas não é fácil, nunca. É preciso ser forte o suficiente para dizer não a um conjunto enorme de coisas que parecem muito valiosas, mas que não passam de ocas aparências de valor.
Há muita gente que gosta de complicar para fugir ao que é simples. Para que me serve um palácio se nele a minha solidão se faz ainda maior? Quantos desistem de lutar pelo amor com a desculpa de que o preço é alto e o prémio pode afinal não valer o esforço? Quantas vezes a falta de amor é vista como paz?
A família é algo simples – puro – mas muitíssimo difícil de alcançar. Implica a renúncia constante aos artifícios do fácil e do imediato. Exige que nos concentremos num caminho longo que acreditamos (sem grandes provas) que é o único que nos pode elevar e levar ao céu.
Numa família há afeto e exemplo, há limites e respeito, há quem nos aceite como somos sem deixar de nos animar a sermos melhores, sem excessos mas com a paciência de quem ama.
A paz resulta de um equilíbrio de elementos diferentes, com talentos e perspetivas distintos. Não através de um esforço de anulação do que é único de cada um, mas precisamente pela riqueza de o orientar rumo a um fim conjunto e harmonioso. Uma espécie de enriquecimento recíproco dos contrários. Promover o bem do outro não é fazer com que se torne semelhante a mim.
A minha casa é o lugar onde eu sou o outro a quem alguém pode expressar o seu "tenho vontade de chorar" sem que eu trace juízos de qualquer espécie, e que lhe faça sentir com o meu silêncio, dedicação e presença que a sua vontade já não é só sua... mas minha também.
A minha família é a minha casa. Até podemos ser apenas dois... mas é aí, e só aí, que posso ser feliz. Longe de casa estou sempre a caminho. O meu coração não descansa senão nos braços de quem tem vontade de sorrir e de chorar comigo.
2014-08-23
O beicinho
Inês Teotónio Pereira ionline 2014.08.16
O beicinho do meu filho
Quando me zango com o meu filho mais novo ele faz beicinho na esperança de eu me comover; caso eu não me comova e mantenha o sobrolho carregado, ele exibe o seu melhor sorriso na esperança de eu me derreter. Resulta quase sempre e é raro ele precisar de recorrer ao sorriso. O meu filho mais novo tem um ano. A criatura ainda não sabe andar, não fala, nem sequer sabe comer sozinha, mas já é perita em técnicas de simulação e de charme que supostamente requerem muito mais inteligência e esforço mental do que dormir sem chucha. É verdade que ele ainda não me engana redondamente e que todas as vezes que me comovi ou me derreti com o seu beicinho ou sorriso - 97% das vezes, mais ou menos - cedi perfeitamente consciente da minha cedência. E é assim, de cedência em cedência, que a criança vai ficando cada dia mais mimada, mais manipuladora e, claro, insuportavelmente encantadora. Conscientemente mimada. O meu filho percebeu ao fim de 12 meses de existência que a sua vida se pode tornar bastante mais agradável se dominar as referidas técnicas de manipulação. Ele sabe enganar-me e sabe que eu me derreto com as estratégias de engano. Este simples episódio doméstico revela duas evidências: a primeira é que nós pais somos presas fáceis, a segunda é que os nossos filhos são uns manipuladores impiedosos. O pior é que se isto é assim com um ano - repito: ele ainda não sabe falar nem andar - como será quando ele tiver 16?
Nós pais vivemos enganados e somos diariamente enganados pelos nossos filhos. Aldrabados, mesmo. Vivemos enganados porque achamos que os conhecemos melhor que a palma da nossa mão e controlamos na perfeição as suas técnicas de manipulação. Achamos que somos os verdadeiros donos disto tudo e que não há ninguém que nos consiga passar a perna. Estamos convencidos que em nossa casa só nós é que passamos a perna aos nossos filhos, nunca o contrário. Acreditamos ingenuamente que o controlo emocional é nosso. Já a criançada, que desde tenra idade domina as técnicas mais desprezíveis de manipulação, vai-nos dando corda para nos enforcarmos ao mesmo tempo que vai conquistando a nossa cega e inabalável confiança. Eles tornam-se geniais na chantagem emocional, peritos em carregar-nos com o peso dos remorsos e exímios simuladores de personalidades diversas. Nós, pais, vamos facilmente nas cantigas. Até porque gostamos da melodia. E a cantiga dos nossos filhos é como os cigarros: começa por ser só um por semana mas quando damos por nós já estamos a comprar maços diariamente. A cantiga dos filhos também começa apenas com um beicinho mas acaba com a cantiga do bandido segundo a qual a professora é que é má e não sabe ensinar e os amigos é que são os irresponsáveis. E nós pais acreditamos em tudo. Queremos e gostamos de acreditar. Não vivemos sem o beicinho enganador e gostamos de ser convencidos pelos nossos filhos de que eles são bons rebeldes, gente de bem e palavra, valentes e virtuosos, crianças sensíveis e incapazes de matar uma mosca por mal. Gostamos que eles nos convençam que são aquilo que queremos que sejam. E eles sabem qual é o guião. Desde que nasceram que sabem qual é guião. E sabem perfeitamente que se o cumprirem à risca melhor para eles e para nós. Mas não há nada mais maravilhoso que este engano. A nossa ingenuidade, a nossa inabalável confiança, a nossa fé nos metralhas dos nossos filhos é aquilo que nos torna melhores pessoas e a eles melhores filhos. Para nós os defeitos dos nossos filhos são meros acidentes perfeitamente insignificantes e todos eles justificáveis. Aliás, nem são bem defeitos, são características. É por pensarem assim que os pais são as melhores pessoas do mundo: os pais acreditam sempre nos filhos. Sempre. Somos pessoas de uma fé inabalável nas crias. Mesmo que saibamos que estamos completamente enganados. É que estar enganado neste caso é um pormenor: o que verdadeiramente interessa é o beicinho. A maravilha do beicinho e do sorriso encantador. O resto são detalhes mesquinhos.
O beicinho do meu filho
Quando me zango com o meu filho mais novo ele faz beicinho na esperança de eu me comover; caso eu não me comova e mantenha o sobrolho carregado, ele exibe o seu melhor sorriso na esperança de eu me derreter. Resulta quase sempre e é raro ele precisar de recorrer ao sorriso. O meu filho mais novo tem um ano. A criatura ainda não sabe andar, não fala, nem sequer sabe comer sozinha, mas já é perita em técnicas de simulação e de charme que supostamente requerem muito mais inteligência e esforço mental do que dormir sem chucha. É verdade que ele ainda não me engana redondamente e que todas as vezes que me comovi ou me derreti com o seu beicinho ou sorriso - 97% das vezes, mais ou menos - cedi perfeitamente consciente da minha cedência. E é assim, de cedência em cedência, que a criança vai ficando cada dia mais mimada, mais manipuladora e, claro, insuportavelmente encantadora. Conscientemente mimada. O meu filho percebeu ao fim de 12 meses de existência que a sua vida se pode tornar bastante mais agradável se dominar as referidas técnicas de manipulação. Ele sabe enganar-me e sabe que eu me derreto com as estratégias de engano. Este simples episódio doméstico revela duas evidências: a primeira é que nós pais somos presas fáceis, a segunda é que os nossos filhos são uns manipuladores impiedosos. O pior é que se isto é assim com um ano - repito: ele ainda não sabe falar nem andar - como será quando ele tiver 16?
Nós pais vivemos enganados e somos diariamente enganados pelos nossos filhos. Aldrabados, mesmo. Vivemos enganados porque achamos que os conhecemos melhor que a palma da nossa mão e controlamos na perfeição as suas técnicas de manipulação. Achamos que somos os verdadeiros donos disto tudo e que não há ninguém que nos consiga passar a perna. Estamos convencidos que em nossa casa só nós é que passamos a perna aos nossos filhos, nunca o contrário. Acreditamos ingenuamente que o controlo emocional é nosso. Já a criançada, que desde tenra idade domina as técnicas mais desprezíveis de manipulação, vai-nos dando corda para nos enforcarmos ao mesmo tempo que vai conquistando a nossa cega e inabalável confiança. Eles tornam-se geniais na chantagem emocional, peritos em carregar-nos com o peso dos remorsos e exímios simuladores de personalidades diversas. Nós, pais, vamos facilmente nas cantigas. Até porque gostamos da melodia. E a cantiga dos nossos filhos é como os cigarros: começa por ser só um por semana mas quando damos por nós já estamos a comprar maços diariamente. A cantiga dos filhos também começa apenas com um beicinho mas acaba com a cantiga do bandido segundo a qual a professora é que é má e não sabe ensinar e os amigos é que são os irresponsáveis. E nós pais acreditamos em tudo. Queremos e gostamos de acreditar. Não vivemos sem o beicinho enganador e gostamos de ser convencidos pelos nossos filhos de que eles são bons rebeldes, gente de bem e palavra, valentes e virtuosos, crianças sensíveis e incapazes de matar uma mosca por mal. Gostamos que eles nos convençam que são aquilo que queremos que sejam. E eles sabem qual é o guião. Desde que nasceram que sabem qual é guião. E sabem perfeitamente que se o cumprirem à risca melhor para eles e para nós. Mas não há nada mais maravilhoso que este engano. A nossa ingenuidade, a nossa inabalável confiança, a nossa fé nos metralhas dos nossos filhos é aquilo que nos torna melhores pessoas e a eles melhores filhos. Para nós os defeitos dos nossos filhos são meros acidentes perfeitamente insignificantes e todos eles justificáveis. Aliás, nem são bem defeitos, são características. É por pensarem assim que os pais são as melhores pessoas do mundo: os pais acreditam sempre nos filhos. Sempre. Somos pessoas de uma fé inabalável nas crias. Mesmo que saibamos que estamos completamente enganados. É que estar enganado neste caso é um pormenor: o que verdadeiramente interessa é o beicinho. A maravilha do beicinho e do sorriso encantador. O resto são detalhes mesquinhos.
2014-08-21
Robin Williams, a noite e o riso
JOÃO MIGUEL TAVARES Público, 14/08/2014
Robin Williams era o tipo que se estava sempre a rir, e nós não podemos esperar do tipo que se está sempre a rir, do homem mais bem-disposto da sala, da máquina de produzir gargalhadas, do humorista destravado, excessivo e imparável, que pegue num cinto para se enforcar, aos 63 anos de idade. Ele não. Ele era o tipo divertido.
Infelizmente, a distracção é nossa: não há qualquer relação entre o riso e a felicidade. Ou se há, é uma relação contrária à que se poderia esperar. O humor é uma arma para enfrentar o absurdo da vida e uma das mais elevadas provas da nossa inteligência. O riso é a nossa defesa contra a consciência da finitude e o instrumento privilegiado para espantar a morte; é, digamos assim, o paliativo que Deus encontrou para que conseguíssemos enfrentar o mais abstruso dos dilemas da criação: "Terás em simultâneo a consciência da morte e o desejo de imortalidade. Vai ser terrível. Mas Eu vou deixar que te rias disso."
E nós rimos, claro. E o riso ajuda-nos a suportar dores, tristezas, melancolias. Mas o bom humorista não tem a mesma sorte - ele está demasiado perto da matéria que queima, vê com demasiada clareza o absurdo da vida. É por isso que nos faz rir: tem um acesso privilegiado ao código do mundo, aponta o dedo à mecânica silenciosa do quotidiano e desmonta as suas peças, a sua arte consiste em chamar a atenção para um certo tipo de óbvio (tiques, truques, hábitos, rituais) que nós não vislumbramos. Todo o grande humorista tem um acréscimo de lucidez. E esse excesso de lucidez empurra-o, com assustadora frequência, para os braços da tristeza e da depressão. Demasiado lúcido para ser feliz.
Repare-se na biografia habitual dos grandes humoristas: filhos únicos, caixas de óculos, miúdos privilegiados mas solitários, pouco sociáveis, gordos, onanistas, nerds, tipos que na adolescência só se conseguem integrar através do humor - o riso é o cavalo de Tróia que lhes permite entrar no mundo. Reparem também como praticamente não há homens (nem mulheres) bonitos no humor. Robin Williams não era bonito, tal como não o são Jim Carrey, Jerry Seinfeld, Louis CK, John Cleese, Bill Murray, Seth Rogen, Tina Fey, Sarah Silverman. A lista é infindável. Para se ser alguém na vida, pode ser de uma certa utilidade ficar fechado em casa na adolescência, sem acesso a festas, nem a miúdas. E essa solidão, esse rasto de clausura, muitas vezes fica lá, e nem Hollywood, nem uma família - ou três casamentos, no caso de Robin Williams - conseguem apagar.
Não há nada de relevante que possamos escrever sobre alguém que se mata - mas ficar em silêncio parece-me cumplicidade com a morte. Eu sou da geração Clube dos Poetas Mortos, filme que nunca me atrevi a rever, porque tenho a certeza de que é muito pior do que a memória que guardo dele. E é impossível ser dessa geração sem ficar profundamente tocado com o suicídio de Robin Williams. Ele foi um extraordinário actor sem nunca ter feito um extraordinário filme, mas para mim será sempre o professor que levou os alunos a subirem para as mesas, que me apresentou Leaves of Grass, e me ensinou o significado das palavras "carpe diem". O capitão, como no poema de Whitman, jaz agora morto, mas ao contrário do poema de Whitman, não houve gesta heróica, nem há razões para celebrar. Robin Williams mentiu: aproveitar apenas o dia não chega. Precisamos todos de alguma coisa que nos sustenha, quando o dia acaba e o riso não sai.
Robin Williams era o tipo que se estava sempre a rir, e nós não podemos esperar do tipo que se está sempre a rir, do homem mais bem-disposto da sala, da máquina de produzir gargalhadas, do humorista destravado, excessivo e imparável, que pegue num cinto para se enforcar, aos 63 anos de idade. Ele não. Ele era o tipo divertido.
Infelizmente, a distracção é nossa: não há qualquer relação entre o riso e a felicidade. Ou se há, é uma relação contrária à que se poderia esperar. O humor é uma arma para enfrentar o absurdo da vida e uma das mais elevadas provas da nossa inteligência. O riso é a nossa defesa contra a consciência da finitude e o instrumento privilegiado para espantar a morte; é, digamos assim, o paliativo que Deus encontrou para que conseguíssemos enfrentar o mais abstruso dos dilemas da criação: "Terás em simultâneo a consciência da morte e o desejo de imortalidade. Vai ser terrível. Mas Eu vou deixar que te rias disso."
E nós rimos, claro. E o riso ajuda-nos a suportar dores, tristezas, melancolias. Mas o bom humorista não tem a mesma sorte - ele está demasiado perto da matéria que queima, vê com demasiada clareza o absurdo da vida. É por isso que nos faz rir: tem um acesso privilegiado ao código do mundo, aponta o dedo à mecânica silenciosa do quotidiano e desmonta as suas peças, a sua arte consiste em chamar a atenção para um certo tipo de óbvio (tiques, truques, hábitos, rituais) que nós não vislumbramos. Todo o grande humorista tem um acréscimo de lucidez. E esse excesso de lucidez empurra-o, com assustadora frequência, para os braços da tristeza e da depressão. Demasiado lúcido para ser feliz.
Repare-se na biografia habitual dos grandes humoristas: filhos únicos, caixas de óculos, miúdos privilegiados mas solitários, pouco sociáveis, gordos, onanistas, nerds, tipos que na adolescência só se conseguem integrar através do humor - o riso é o cavalo de Tróia que lhes permite entrar no mundo. Reparem também como praticamente não há homens (nem mulheres) bonitos no humor. Robin Williams não era bonito, tal como não o são Jim Carrey, Jerry Seinfeld, Louis CK, John Cleese, Bill Murray, Seth Rogen, Tina Fey, Sarah Silverman. A lista é infindável. Para se ser alguém na vida, pode ser de uma certa utilidade ficar fechado em casa na adolescência, sem acesso a festas, nem a miúdas. E essa solidão, esse rasto de clausura, muitas vezes fica lá, e nem Hollywood, nem uma família - ou três casamentos, no caso de Robin Williams - conseguem apagar.
Não há nada de relevante que possamos escrever sobre alguém que se mata - mas ficar em silêncio parece-me cumplicidade com a morte. Eu sou da geração Clube dos Poetas Mortos, filme que nunca me atrevi a rever, porque tenho a certeza de que é muito pior do que a memória que guardo dele. E é impossível ser dessa geração sem ficar profundamente tocado com o suicídio de Robin Williams. Ele foi um extraordinário actor sem nunca ter feito um extraordinário filme, mas para mim será sempre o professor que levou os alunos a subirem para as mesas, que me apresentou Leaves of Grass, e me ensinou o significado das palavras "carpe diem". O capitão, como no poema de Whitman, jaz agora morto, mas ao contrário do poema de Whitman, não houve gesta heróica, nem há razões para celebrar. Robin Williams mentiu: aproveitar apenas o dia não chega. Precisamos todos de alguma coisa que nos sustenha, quando o dia acaba e o riso não sai.
2014-08-19
Minorias Menores: os cristãos do Médio Oriente
PAULO RANGEL, Público, 12/08/2014
Por vezes, algum prurido ou "pseudo-prurido" ocidental faz com que se faça uma grande apologia da liberdade religiosa e da defesa das minorias, mas se enfileire por uma atitude passiva quando está em causa a religião dominante no Ocidente.
1. As operações militares que os Estados Unidos iniciaram no Iraque, com cooperação francesa e britânica, e a acção de ajuda humanitária a centenas de milhares de refugiados mostram bem a instabilidade e a gravidade do momento internacional que vivemos.
Especialmente se pensarmos que este desenvolvimento decorre a par da terrível situação em Gaza, da persistência do impasse na Síria, do adensar das interrogações na Ucrânia, da emissão do alerta de saúde global a propósito do vírus Ébola. A actual situação no Iraque e a necessidade de intervenção externa merece uma análise cuidada e uma reflexão profunda, que hoje não vou nem quero fazer aqui.
2. Hoje quero pôr em destaque, chamemos-lhe assim por ironia, um "dano colateral" das mudanças que estão a ocorrer no Médio Oriente e, em especial, no Iraque. Esse "dano colateral" vem a ser a sistemática perseguição aos cristãos iraquianos, que começou imediatamente após a queda de Saddam Hussein. E faço-o, não apenas por aparecerem agora em parangonas, as atrocidades do chamado Exército islâmico do Iraque e do Levante. Mas muito por causa do vibrante apelo do Papa Francisco a este respeito, apelo que ouvi na semana passada transmitido por um sacerdote guineense na Igreja da Trindade no Porto e que acabo de ouvir a um padre de origem mediterrânica na discreta catedral de S.Pedro e S.Paulo em Tallin.
3. É bem sabido que o regime de Saddam Hussein, apesar de ditatorial, senguinário e delirante, mercê da sua filiação numa tradição político-militar laica e ideológica, revelou sempre uma tolerância razoável para com as minorias religiosas. No que, de resto, não se distinguiu da linha prosseguida pela terrível famíla Assad na Síria ou da orientação própria da ditadura militar que regia o Egipto.
A queda de Saddam Hussein e a situação de instabilidade permanente que se lhe seguiu, fosse com a autoridade norte-americana fosse com a instalação da nova governação autóctone, levaram ao início de uma perseguição sistemática à minoria cristã. Estamos a falar de comunidades cristãs numerosas, em alguns casos com uma implantação contínua e ininterrupta que remonta ao nascimento do cristianismo (é o caso das comunidades da Caldeia e de algumas do Egipto). Trata-se de matéria que tenho seguido com interesse, embora intermitentemente, no Parlamento Europeu e, em particular, no âmbito das plataformas de diálogo inter-religioso de há muito estabelecidas no PPE e em que as igrejas cristãs do Médio Oriente e a Igreja Copta do Egipto têm um grande protagonismo.
4. Pois bem, assim que a mudança de poder se iniciou, a situação das famílias cristãs de Bagdade e também de outras regiões passou a ser de risco. Recordo-me de, há cerca de quatro anos, o Patriarca de Bagdade, ao lado de outros bispos iraquianos, ter relatado em Bruxelas que os grupos fundamentalistas muçulmanos tinham inaugurado uma carnificina baseada na prática do terror. Em cada semana, à força da espada e do sabre, matavam uma família de religião cristã na comunidade de Bagdade. Faziam-no com uma regularidade e com uma implacabilidade tais que o pânico se disseminou e um número relevantíssimo de cristãos resolveu abandonar a cidade e o país. Esta prática terrorista, apesar de regular e de altamente eficaz nos seus objectivos perversos, não teve nunca visibilidade na comunidade internacional. Por mais denúncias que os bispos fizessem, poucos queriam ouvir falar de perseguições aos cristãos, por mais que tivessem como bandeira a defesa dos direitos humanos e da tolerância. É certo que, em alguns casos contados, houve alguma repercussão na opinião pública e publicada. Por exemplo, no caso do ataque às igrejas coptas e aos seus membros no Egipto, aquando da turbulência causada pela primavera árabe. Ou, muito recentemente, no impressionante caso do rapto de centenas de raparigas nigerianas. Mas a verdade é que continua a haver um largo silenciamento dos ataques às minorias cristãs
5. É absolutamente fundamental não apagar nem silenciar esta terrível perseguição. Só agora com a denúncia da actuação mais recente do Exército Islâmico do Iraque e do Levante, em que extremistas muçulmanos decretaram a obrigatoriedade da conversão dos cristãos, emitiram um fatwa que confisca todos os seus bens e pertences e lhes assinalaram as casas, para que se saiba que são infiéis, é que começa a haver um movimento consistente de defesa dos direitos desta minoria. Estas práticas, como ainda ontem se viu relativamente a outra minoria religiosa, não andam longe das grandes atrocidades do regime nazi. Ora, por vezes, algum prurido ou "pseudo-prurido" ocidental faz com que se faça uma grande apologia da liberdade religiosa e da defesa das minorias, mas se enfileire por uma atitude passiva quando está em causa a religião dominante no Ocidente.
6. Que fique claro de uma vez por todas: as minorias cristãs também merecem protecção e também precisam de uma voz activa na comunidade internacional. Claro que o pior que poderia acontecer é que essa defesa activa fosse feita por um qualquer sentimento de "cumplicidade religiosa", pois isso, para além de injusto e moralmente inaceitável, conduziria a uma escalada e a uma espiral de vingança e de vinganças. O direito a professar a religião, em liberdade e em tolerância, é independente da concreta fé que cada um professa. Eis um princípio que deve valer para todas as minorias religiosas. Também as cristãs. Também as cristãs, mas não por serem cristãs.
Por vezes, algum prurido ou "pseudo-prurido" ocidental faz com que se faça uma grande apologia da liberdade religiosa e da defesa das minorias, mas se enfileire por uma atitude passiva quando está em causa a religião dominante no Ocidente.
1. As operações militares que os Estados Unidos iniciaram no Iraque, com cooperação francesa e britânica, e a acção de ajuda humanitária a centenas de milhares de refugiados mostram bem a instabilidade e a gravidade do momento internacional que vivemos.
Especialmente se pensarmos que este desenvolvimento decorre a par da terrível situação em Gaza, da persistência do impasse na Síria, do adensar das interrogações na Ucrânia, da emissão do alerta de saúde global a propósito do vírus Ébola. A actual situação no Iraque e a necessidade de intervenção externa merece uma análise cuidada e uma reflexão profunda, que hoje não vou nem quero fazer aqui.
2. Hoje quero pôr em destaque, chamemos-lhe assim por ironia, um "dano colateral" das mudanças que estão a ocorrer no Médio Oriente e, em especial, no Iraque. Esse "dano colateral" vem a ser a sistemática perseguição aos cristãos iraquianos, que começou imediatamente após a queda de Saddam Hussein. E faço-o, não apenas por aparecerem agora em parangonas, as atrocidades do chamado Exército islâmico do Iraque e do Levante. Mas muito por causa do vibrante apelo do Papa Francisco a este respeito, apelo que ouvi na semana passada transmitido por um sacerdote guineense na Igreja da Trindade no Porto e que acabo de ouvir a um padre de origem mediterrânica na discreta catedral de S.Pedro e S.Paulo em Tallin.
3. É bem sabido que o regime de Saddam Hussein, apesar de ditatorial, senguinário e delirante, mercê da sua filiação numa tradição político-militar laica e ideológica, revelou sempre uma tolerância razoável para com as minorias religiosas. No que, de resto, não se distinguiu da linha prosseguida pela terrível famíla Assad na Síria ou da orientação própria da ditadura militar que regia o Egipto.
A queda de Saddam Hussein e a situação de instabilidade permanente que se lhe seguiu, fosse com a autoridade norte-americana fosse com a instalação da nova governação autóctone, levaram ao início de uma perseguição sistemática à minoria cristã. Estamos a falar de comunidades cristãs numerosas, em alguns casos com uma implantação contínua e ininterrupta que remonta ao nascimento do cristianismo (é o caso das comunidades da Caldeia e de algumas do Egipto). Trata-se de matéria que tenho seguido com interesse, embora intermitentemente, no Parlamento Europeu e, em particular, no âmbito das plataformas de diálogo inter-religioso de há muito estabelecidas no PPE e em que as igrejas cristãs do Médio Oriente e a Igreja Copta do Egipto têm um grande protagonismo.
4. Pois bem, assim que a mudança de poder se iniciou, a situação das famílias cristãs de Bagdade e também de outras regiões passou a ser de risco. Recordo-me de, há cerca de quatro anos, o Patriarca de Bagdade, ao lado de outros bispos iraquianos, ter relatado em Bruxelas que os grupos fundamentalistas muçulmanos tinham inaugurado uma carnificina baseada na prática do terror. Em cada semana, à força da espada e do sabre, matavam uma família de religião cristã na comunidade de Bagdade. Faziam-no com uma regularidade e com uma implacabilidade tais que o pânico se disseminou e um número relevantíssimo de cristãos resolveu abandonar a cidade e o país. Esta prática terrorista, apesar de regular e de altamente eficaz nos seus objectivos perversos, não teve nunca visibilidade na comunidade internacional. Por mais denúncias que os bispos fizessem, poucos queriam ouvir falar de perseguições aos cristãos, por mais que tivessem como bandeira a defesa dos direitos humanos e da tolerância. É certo que, em alguns casos contados, houve alguma repercussão na opinião pública e publicada. Por exemplo, no caso do ataque às igrejas coptas e aos seus membros no Egipto, aquando da turbulência causada pela primavera árabe. Ou, muito recentemente, no impressionante caso do rapto de centenas de raparigas nigerianas. Mas a verdade é que continua a haver um largo silenciamento dos ataques às minorias cristãs
5. É absolutamente fundamental não apagar nem silenciar esta terrível perseguição. Só agora com a denúncia da actuação mais recente do Exército Islâmico do Iraque e do Levante, em que extremistas muçulmanos decretaram a obrigatoriedade da conversão dos cristãos, emitiram um fatwa que confisca todos os seus bens e pertences e lhes assinalaram as casas, para que se saiba que são infiéis, é que começa a haver um movimento consistente de defesa dos direitos desta minoria. Estas práticas, como ainda ontem se viu relativamente a outra minoria religiosa, não andam longe das grandes atrocidades do regime nazi. Ora, por vezes, algum prurido ou "pseudo-prurido" ocidental faz com que se faça uma grande apologia da liberdade religiosa e da defesa das minorias, mas se enfileire por uma atitude passiva quando está em causa a religião dominante no Ocidente.
6. Que fique claro de uma vez por todas: as minorias cristãs também merecem protecção e também precisam de uma voz activa na comunidade internacional. Claro que o pior que poderia acontecer é que essa defesa activa fosse feita por um qualquer sentimento de "cumplicidade religiosa", pois isso, para além de injusto e moralmente inaceitável, conduziria a uma escalada e a uma espiral de vingança e de vinganças. O direito a professar a religião, em liberdade e em tolerância, é independente da concreta fé que cada um professa. Eis um princípio que deve valer para todas as minorias religiosas. Também as cristãs. Também as cristãs, mas não por serem cristãs.
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2014-08-18
Redescobrindo o Ocidente
JOÃO CARLOS ESPADA Público, 11/08/2014
Stark afirma que "a modernidade é inteiramente o produto da civilização ocidental."
Depois das sugestões de livros para férias, inicio hoje, previsivelmente até 1 de Setembro, uma série dedicada a leituras em férias.
How the West Won: The Neglected Story of the Triumph of Modernity, de Rodney Stark, (ISI Books, 2014) é o ponto de partida destas leituras estivais. Apesar do título vagamente belicoso, o livro não é sobre a superioridade militar do Ocidente. É sobre a complexa mistura de valores, práticas e instituições que, ao longo dos séculos, distinguiram o Ocidente do resto (The West and the Rest, no título provocatório de um livro de Roger Scruton sobre o mesmo tema).
Há uns quarenta anos, recorda Stark, uma das disciplinas mais importantes nas licenciaturas das melhores universidades americanas chamava-se Western Civilization. Aí se estudavam os grandes livros e as grandes obras de arte da cultura ocidental. Mas as modas "politicamente correctas" ostracizaram essa área de estudo. Diz-se agora que a civilização ocidental é apenas uma entre muitas civilizações e que estudar a nossa seria "etnocêntrico e arrogante."
Isto tem gerado uma ignorância patética sobre o passado. E, com ela, têm crescido as mais divertidas e absurdas teses politicamente correctas. Stark recorda algumas delas: que os gregos copiaram a sua cultura do Egipto; que a ciência europeia teve origem no Islão; que a riqueza ocidental foi roubada às sociedades não ocidentais; que a modernidade ocidental foi realmente criada na China.
Stark não nega que o Ocidente tenha sabiamente adoptado elementos de outras civilizações. Mas afirma, e procura ilustrar ao longo de mais de 400 páginas, que "a modernidade é inteiramente o produto da civilização ocidental." De caminho, Stark procura refutar muitos outros preconceitos actualmente dominantes na nossa cultura política.
"A Idade das Trevas", nunca existiu, argumenta o autor, em defesa do cristianismo medieval. Foi na verdade uma era de notável progresso e inovação, que incluiu a emergência do capitalismo. Também a chamada "revolução científica" do século XVII não foi propriamente uma revolução, no sentido de uma ruptura com o passado. Terá sido basicamente o culminar de um gradual progresso científico cujas raízes remontam às primeiras universidades do século XII — fundadas pelos filósofos escolásticos e protegidas pela Igreja de Roma.
Outro mito que ocupa Stark é o da revolução industrial como produto do desígnio central de governos esclarecidos. Em rigor, quase o contrário pode ter acontecido. A Inglaterra, a Holanda e a liga das cidades hanseáticas lideraram a industrialização porque os direitos de propriedade e o primado da lei sobre a vontade das cortes estava aí solidamente estabelecido. A origem desse primado da lei sobre o poder político deve ser procurada na Magna Carta de 1215 – que no próximo ano de 2015 celebrará a simpática idade de 800 anos. A Inglaterra tinha ainda a vantagem adicional de não ter uma larga corte centralizada em Londres, financiada por impostos. A aristocracia estava dispersa pelo país, nas suas vastas propriedades, de que não era absentista, e por isso procurou rentabilizá-las descentralizadamente, através de inovações e investimento.
A centralização é aliás um dos alvos preferidos de Rodney Stark. Isso leva-o a criticar o Império Romano, que só terá assistido a dois progressos maiores: a invenção do cimento e a emergência do cristianismo, sendo que este último contou com a severa oposição imperial. A queda do Império Romano, argumenta Stark, foi aliás altamente benéfica para a Europa e o Ocidente. Removeu um sistema altamente centralizado e caro, fundado em impostos altos, e deu lugar a uma vasta pluralidade de centros de decisão que concorriam entre si e que tinham de gerar auto-sustento.
A lista de observações politicamente incorrectas é interminável. O livro está escrito num tom algo panfletário, por vezes bastante divertido, mas não é um simples panfleto. Stark mobiliza uma vastíssima bibliografia académica. Basicamente, articula num único livro o que muitos autores vêm dizendo em áreas mais especializadas. Vale a pena citar as suas palavras de conclusão:
"Sem dúvida que a modernidade ocidental tem as suas limitações e os seus descontentes. Ainda assim, é de longe melhor do que as alternativas – não só, nem primariamente, devido à sua tecnologia avançada, mas devido ao seu comprometimento fundamental com a liberdade, a razão e a dignidade humana".
Stark afirma que "a modernidade é inteiramente o produto da civilização ocidental."
Depois das sugestões de livros para férias, inicio hoje, previsivelmente até 1 de Setembro, uma série dedicada a leituras em férias.
How the West Won: The Neglected Story of the Triumph of Modernity, de Rodney Stark, (ISI Books, 2014) é o ponto de partida destas leituras estivais. Apesar do título vagamente belicoso, o livro não é sobre a superioridade militar do Ocidente. É sobre a complexa mistura de valores, práticas e instituições que, ao longo dos séculos, distinguiram o Ocidente do resto (The West and the Rest, no título provocatório de um livro de Roger Scruton sobre o mesmo tema).
Há uns quarenta anos, recorda Stark, uma das disciplinas mais importantes nas licenciaturas das melhores universidades americanas chamava-se Western Civilization. Aí se estudavam os grandes livros e as grandes obras de arte da cultura ocidental. Mas as modas "politicamente correctas" ostracizaram essa área de estudo. Diz-se agora que a civilização ocidental é apenas uma entre muitas civilizações e que estudar a nossa seria "etnocêntrico e arrogante."
Isto tem gerado uma ignorância patética sobre o passado. E, com ela, têm crescido as mais divertidas e absurdas teses politicamente correctas. Stark recorda algumas delas: que os gregos copiaram a sua cultura do Egipto; que a ciência europeia teve origem no Islão; que a riqueza ocidental foi roubada às sociedades não ocidentais; que a modernidade ocidental foi realmente criada na China.
Stark não nega que o Ocidente tenha sabiamente adoptado elementos de outras civilizações. Mas afirma, e procura ilustrar ao longo de mais de 400 páginas, que "a modernidade é inteiramente o produto da civilização ocidental." De caminho, Stark procura refutar muitos outros preconceitos actualmente dominantes na nossa cultura política.
"A Idade das Trevas", nunca existiu, argumenta o autor, em defesa do cristianismo medieval. Foi na verdade uma era de notável progresso e inovação, que incluiu a emergência do capitalismo. Também a chamada "revolução científica" do século XVII não foi propriamente uma revolução, no sentido de uma ruptura com o passado. Terá sido basicamente o culminar de um gradual progresso científico cujas raízes remontam às primeiras universidades do século XII — fundadas pelos filósofos escolásticos e protegidas pela Igreja de Roma.
Outro mito que ocupa Stark é o da revolução industrial como produto do desígnio central de governos esclarecidos. Em rigor, quase o contrário pode ter acontecido. A Inglaterra, a Holanda e a liga das cidades hanseáticas lideraram a industrialização porque os direitos de propriedade e o primado da lei sobre a vontade das cortes estava aí solidamente estabelecido. A origem desse primado da lei sobre o poder político deve ser procurada na Magna Carta de 1215 – que no próximo ano de 2015 celebrará a simpática idade de 800 anos. A Inglaterra tinha ainda a vantagem adicional de não ter uma larga corte centralizada em Londres, financiada por impostos. A aristocracia estava dispersa pelo país, nas suas vastas propriedades, de que não era absentista, e por isso procurou rentabilizá-las descentralizadamente, através de inovações e investimento.
A centralização é aliás um dos alvos preferidos de Rodney Stark. Isso leva-o a criticar o Império Romano, que só terá assistido a dois progressos maiores: a invenção do cimento e a emergência do cristianismo, sendo que este último contou com a severa oposição imperial. A queda do Império Romano, argumenta Stark, foi aliás altamente benéfica para a Europa e o Ocidente. Removeu um sistema altamente centralizado e caro, fundado em impostos altos, e deu lugar a uma vasta pluralidade de centros de decisão que concorriam entre si e que tinham de gerar auto-sustento.
A lista de observações politicamente incorrectas é interminável. O livro está escrito num tom algo panfletário, por vezes bastante divertido, mas não é um simples panfleto. Stark mobiliza uma vastíssima bibliografia académica. Basicamente, articula num único livro o que muitos autores vêm dizendo em áreas mais especializadas. Vale a pena citar as suas palavras de conclusão:
"Sem dúvida que a modernidade ocidental tem as suas limitações e os seus descontentes. Ainda assim, é de longe melhor do que as alternativas – não só, nem primariamente, devido à sua tecnologia avançada, mas devido ao seu comprometimento fundamental com a liberdade, a razão e a dignidade humana".
2014-08-11
Há cem anos, quando as luzes se apagaram
JOÃO CARLOS ESPADA, Público 04/08/2014
Hoje à noite, na Abadia de Westminster, será celebrado um serviço religioso em memória de todos os que caíram na I Guerra Mundial. Pelas 22h, as luzes da abadia serão apagadas uma após outra, até restar apenas um ténue candeeiro a petróleo, junto da campa do Soldado Desconhecido.
Às 23h — cem anos depois de o Reino Unido ter declarado guerra à Alemanha, por esta ter invadido a Bélgica — também essa luz será apagada. O mesmo acontecerá em vários edifícios públicos, incluindo o Parlamento. Todos os cidadãos britânicos são convidados a seguir um procedimento semelhante nas suas casas.
Escrevendo no Telegraph de sábado passado, Charles Moore (biógrafo de Margaret Thatcher e antigo director daquele jornal) recordou que o Reino Unido é o único país europeu "que esteve no lado certo nas duas guerras mundiais, que lhes sobreviveu sem ser conquistado, e que mantém, sem rupturas, o mesmo sistema constitucional que existia antes dessas guerras". Apesar disso, ou por isso mesmo, ele considera totalmente apropriada a forma discreta e inclusiva com que o seu país vai assinalar o centenário da I Guerra Mundial.
Julgo que tem razão. Em vez de procurar os países "culpados" pela I Guerra, devemos recordar as ideias políticas que propiciaram os comportamentos que conduziram à guerra.
Basicamente, essas ideias exprimiam uma reacção contra a atmosfera moral e cultural que presidira aos cem anos de paz e crescimento económico ocorridos entre o fim das guerras napoleónicas (1815) e o início da I Guerra (1914) — um período por vezes designado por Pax Britannica.
Podemos agrupar essas ideias reaccionárias/revolucionárias em três categorias principais: (1) o proteccionismo nacionalista; (2) a ideologia da luta de classes; (3) o niilismo anticristão. Friedrich List (1789-1846), Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Nietzsche (1844-1900) foram os autores, entre muitos outros, que mais se celebrizaram na defesa dessas ideias.
List, de longe o mais moderado, publicou em 1841 um best-seller europeu que deu pelo nome de O Sistema Nacional de Economia Política. Aí criticou aquilo que designou por "a escola", referindo-se ao ideário do comércio livre e do governo imparcial, limitado pela lei, que tinha sido defendido por Adam Smith em A Riqueza das Nações (1776). Em alternativa, defendeu que os governos nacionais deviam proteger e incentivar sectores económicos específicos, promovendo uma espécie de "guerra económica" pela supremacia nacional. Ainda que não intencionalmente, as ideias de List promoveram o proteccionismo nacionalista na Europa, onde antes tinha sido dominante a prática do comércio livre.
As ideias de Karl Marx são conhecidas, embora o seu alcance permaneça mal compreendido. Basicamente, Marx desencadeou um ataque fulminante contra o Estado de direito e o sistema parlamentar, acusando-os de servir uma classe economicamente dominante. Segundo ele, os princípios da igualdade perante a lei, da separação de poderes e do governo que responde ao Parlamento eram pura hipocrisia. No seu lugar, colocou a crua guerra pelo poder nu, absoluto e arbitrário, sem limites legais, em nome dos interesses dos pobres, liderados pelo proletariado e pelo seu partido de vanguarda, o partido comunista.
Nietzsche foi, a meus olhos, o mais desagradável. Onde Marx e, em grau menor, List tinham instalado o relativismo dos meios ao serviço de fins considerados "bons", Nietzsche instalou o relativismo absoluto — de meios e de fins. Denunciando o "moralismo inglês de lojistas e comerciantes", pregou uma nova "moralidade", que devia estar "para além do bem e do mal": a chamada "vontade de poder". O alvo central dos seus ataques foi a mensagem moral cristã — que ao longo dos séculos permitira à civilização europeia conter o arbítrio da vontade sem entraves, sob o imperativo moral do sentido de dever, fundado na lei natural, a lei de Deus.
As ideias de List, Marx e Nietzsche anunciavam um mundo novo, liberto dos preconceitos antiquados da "velha Europa" — preconceitos que tinham sido subscritos por antiquados autores europeus, como Aristóteles, Tomás de Aquino, John Locke, Montesquieu, Adam Smith, Edmund Burke, Immanuel Kant ou Alexis de Tocqueville.
Na noite de 4 de Agosto de 1914, um gentleman antiquado intuiu os efeitos catastróficos que adviriam da "libertação" desses velhos preconceitos europeus. Chamava-se (Sir) Edward Grey, era ministro dos Negócios Estrangeiros britânico e terá dito: "The lamps are going out all over Europe; we shall not see them lit again in our life."
Hoje à noite, na Abadia de Westminster, será celebrado um serviço religioso em memória de todos os que caíram na I Guerra Mundial. Pelas 22h, as luzes da abadia serão apagadas uma após outra, até restar apenas um ténue candeeiro a petróleo, junto da campa do Soldado Desconhecido.
Às 23h — cem anos depois de o Reino Unido ter declarado guerra à Alemanha, por esta ter invadido a Bélgica — também essa luz será apagada. O mesmo acontecerá em vários edifícios públicos, incluindo o Parlamento. Todos os cidadãos britânicos são convidados a seguir um procedimento semelhante nas suas casas.
Escrevendo no Telegraph de sábado passado, Charles Moore (biógrafo de Margaret Thatcher e antigo director daquele jornal) recordou que o Reino Unido é o único país europeu "que esteve no lado certo nas duas guerras mundiais, que lhes sobreviveu sem ser conquistado, e que mantém, sem rupturas, o mesmo sistema constitucional que existia antes dessas guerras". Apesar disso, ou por isso mesmo, ele considera totalmente apropriada a forma discreta e inclusiva com que o seu país vai assinalar o centenário da I Guerra Mundial.
Julgo que tem razão. Em vez de procurar os países "culpados" pela I Guerra, devemos recordar as ideias políticas que propiciaram os comportamentos que conduziram à guerra.
Basicamente, essas ideias exprimiam uma reacção contra a atmosfera moral e cultural que presidira aos cem anos de paz e crescimento económico ocorridos entre o fim das guerras napoleónicas (1815) e o início da I Guerra (1914) — um período por vezes designado por Pax Britannica.
Podemos agrupar essas ideias reaccionárias/revolucionárias em três categorias principais: (1) o proteccionismo nacionalista; (2) a ideologia da luta de classes; (3) o niilismo anticristão. Friedrich List (1789-1846), Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Nietzsche (1844-1900) foram os autores, entre muitos outros, que mais se celebrizaram na defesa dessas ideias.
List, de longe o mais moderado, publicou em 1841 um best-seller europeu que deu pelo nome de O Sistema Nacional de Economia Política. Aí criticou aquilo que designou por "a escola", referindo-se ao ideário do comércio livre e do governo imparcial, limitado pela lei, que tinha sido defendido por Adam Smith em A Riqueza das Nações (1776). Em alternativa, defendeu que os governos nacionais deviam proteger e incentivar sectores económicos específicos, promovendo uma espécie de "guerra económica" pela supremacia nacional. Ainda que não intencionalmente, as ideias de List promoveram o proteccionismo nacionalista na Europa, onde antes tinha sido dominante a prática do comércio livre.
As ideias de Karl Marx são conhecidas, embora o seu alcance permaneça mal compreendido. Basicamente, Marx desencadeou um ataque fulminante contra o Estado de direito e o sistema parlamentar, acusando-os de servir uma classe economicamente dominante. Segundo ele, os princípios da igualdade perante a lei, da separação de poderes e do governo que responde ao Parlamento eram pura hipocrisia. No seu lugar, colocou a crua guerra pelo poder nu, absoluto e arbitrário, sem limites legais, em nome dos interesses dos pobres, liderados pelo proletariado e pelo seu partido de vanguarda, o partido comunista.
Nietzsche foi, a meus olhos, o mais desagradável. Onde Marx e, em grau menor, List tinham instalado o relativismo dos meios ao serviço de fins considerados "bons", Nietzsche instalou o relativismo absoluto — de meios e de fins. Denunciando o "moralismo inglês de lojistas e comerciantes", pregou uma nova "moralidade", que devia estar "para além do bem e do mal": a chamada "vontade de poder". O alvo central dos seus ataques foi a mensagem moral cristã — que ao longo dos séculos permitira à civilização europeia conter o arbítrio da vontade sem entraves, sob o imperativo moral do sentido de dever, fundado na lei natural, a lei de Deus.
As ideias de List, Marx e Nietzsche anunciavam um mundo novo, liberto dos preconceitos antiquados da "velha Europa" — preconceitos que tinham sido subscritos por antiquados autores europeus, como Aristóteles, Tomás de Aquino, John Locke, Montesquieu, Adam Smith, Edmund Burke, Immanuel Kant ou Alexis de Tocqueville.
Na noite de 4 de Agosto de 1914, um gentleman antiquado intuiu os efeitos catastróficos que adviriam da "libertação" desses velhos preconceitos europeus. Chamava-se (Sir) Edward Grey, era ministro dos Negócios Estrangeiros britânico e terá dito: "The lamps are going out all over Europe; we shall not see them lit again in our life."
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