2014-09-18

Glórias britânicas

José Maria C. S. André

Acabaram-se as minhas férias no Reino Unido, durante as quais assisti a aulas muito interessantes sobre a história da Igreja naquele país. Aprendi imenso.

Os historiadores ingleses não escondem alguma página triste, como a perseguição aos católicos (ainda não completamente abolida em certos aspectos práticos), no entanto, o balanço é extraordinário, até na lucidez com que este povo olha o seu passado.

Um ponto alto da história britânica é a participação política. A democracia foi arraigando e no século XVIII já era uma conquista civilizacional razoavelmente consolidada.

Outra das glórias do país é a abolição da escravatura moderna. A escravatura já desaparecera na Europa nos primeiros séculos do cristianismo e assim continuou durante toda a Idade Média, mas depois, com os descobrimentos marítimos, voltou. Reagiram os Papas, alguma gente de bom coração esforçou-se por libertar os escravos e proporcionar-lhes melhores condições mas, apesar de pequenos êxitos, os interesses económicos prevaleceram e a Europa voltou a praticar a escravatura. Foi em Inglaterra, no final do século XVIII, que a situação se alterou, sobretudo graças a William Pitt e a William Wilberforce (lembram-se do filme «Amazing Grace»?).

William Pitt, considerado o melhor Primeiro-Ministro inglês, chegou ao cargo com 24 anos de experiência, ou, para o dizer de forma mais clara, foi Primeiro-Ministro com 24 anos de idade. Dizia-se que «would not last out the Christmas season» (não ia chegar ao Natal), mas sobreviveu 17 anos, com vários êxitos eleitorais retumbantes. Pitt ficou na história pelo sucesso económico e social, pela «revolução» na política monetária, por vitórias militares (como a batalha de Trafalgar, que aniquilou a armada napoleónica, desejosa de invadir a Grã-Bretanha). Sobretudo, Pitt ficou conhecido pela sua integridade pessoal e pelas causas cívicas em que se empenhou, principalmente a abolição da escravatura, conseguida ao fim de duas décadas e meia de esforço conjunto com o seu amigo William Wilberforce.

Outro objectivo de William Pitt era mitigar a perseguição aos católicos, mas o rei Jorge III opôs-se, com o argumento de que isso iria contra o juramento que fizera ao tomar posse como rei. Em consequência, Pitt demitiu-se. Entretanto, já tinha conseguido que o espírito prático dos ingleses aceitasse algumas mudanças. Por exemplo, convenceu-os de que era melhor os padres católicos serem formados no seu país do que terem de ir estudar para o estrangeiro, nomeadamente para França, expostos às loucuras ideológicas da Revolução Francesa. Com esse argumento de sentido prático, conseguiu que um rei ferreamente anticatólico fundasse e financiasse a Maynooth University, em 1795, uma universidade católica!

O grande colaborador de Pitt, William Wilberforce, homem de profunda religiosidade, também tinha simpatia pelos católicos. Tentou, sem êxito, que o catolicismo fosse aceite e que os católicos pudessem ser funcionários públicos e até ser eleitos para o Parlamento. Grande parte da família Wilberforce converteu-se ao catolicismo durante o século XIX e isso teve grande eco, porque eram personalidades de grande craveira e muito estimadas.

Outro exemplo do espírito prático dos ingleses é a forma como promoveram a escolaridade. Em vez de criarem escolas estatais, apoiaram as boas escolas. Foi deste modo que as escolas católicas floresceram com o apoio do Estado, porque tinham prestígio académico e eram preferidas por muitas famílias, apesar de o número de católicos na época ser ínfimo. Esta política fez com que a taxa de alfabetização chegasse a 100% no Reino Unido, um século antes de alcançar 10% em Portugal e em muitos outros países do mundo.

Ainda hoje, quando os ingleses falam de «escola pública» referem-se a qualquer escola, porque são todas apoiadas pelo Estado, a começar pelas católicas. Quando lhes explico que em Portugal «escola pública» significa «escola estatal», eles abrem a boca de espanto: vocês deixam que os funcionários públicos fiquem com o vosso dinheiro e decidam a educação dos vossos filhos?

Há coisas que ultrapassam a capacidade de compreensão dos ingleses.

2014-09-15

A sociedade aberta e os seus inimigos

JOÃO CARLOS ESPADA Público, 15/09/2014

Quando a notícia me chegou, estava então a leccionar na Universidade de Brown, nos EUA, apressei-me a voar para Londres e ainda pude estar no funeral de Popper. Nessa noite, viajando de carro com Ralf Dahrendorf entre Londres e Oxford, mantivemos longos períodos de silêncio. O nosso herói tinha partido. Mas o seu exemplo e os seus ensinamentos ficavam connosco.Na próxima quarta-feira, passarão exactamente 20 anos sobre a morte de Karl Popper, a 17 de Setembro de 1994.

Dei conta do funeral de Popper neste mesmo jornal, onde também era cronista naquela data. Talvez não seja despropositado recordar hoje o grande filósofo austro-britânico e algum do vasto legado intelectual que nos deixou.

Embora Popper tenha sido sobretudo um filósofo da ciência e do conhecimento, o seu livro mais famoso foi A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos — uma obra de filosofia política que escreveu entre 1938 e 1943, durante o exílio voluntário na Nova Zelândia, e que apresentou como o seu "esforço de guerra" em defesa das democracias ocidentais contra os totalitarismos nazi e comunista.

O livro, originalmente publicado em língua inglesa em 1945, é geralmente apontado como um dos mais influentes do século XX. Entre nós, foi inicialmente publicado em 1990, pela Editorial Fragmentos, e foi reeditado pelas Edições 70 em 2012.

A Sociedade Aberta foi aplaudida por filósofos, políticos e estadistas de várias inclinações políticas democráticas, à esquerda e à direita. Em Portugal, Mário Soares e Diogo Freitas do Amaral, declararam-se admiradores do velho filósofo. Tive o privilégio de acompanhar cada um deles em visitas privadas a casa de Karl Popper, em Kenley, perto de Londres, em 1992 e 1993, respectivamente.

O impacto imediato da publicação de A Sociedade Aberta e os seus Inimigos centrou-se na sua crítica demolidora do marxismo, em nome da tradição da liberdade e responsabilidade pessoal.

Em primeiro lugar, Popper reconheceu e elogiou o impulso moral humanitário e "melhorista" subjacente à doutrina de Marx, o impulso para melhorar a sorte dos nossos semelhantes e aliviar o sofrimento humano susceptível de ser evitado. Mas, simultaneamente, acusou a doutrina de Marx de ter abandonado e até "atraiçoado" esse impulso moral humanitário que lhe dera origem, em troca de uma ideologia dogmática e destituída de moral, ou moralmente relativista. Por outras palavras, Karl Popper condenou a mensagem moral de Marx em nome dos próprios princípios morais humanitários de que Marx se reclamara.

Em segundo lugar, Popper dissecou o conteúdo substantivo da doutrina de Marx, agora separada do seu impulso moral, e acusou-a de reaccionária. Colocou-a sem hesitações ao lado das ideologias contrárias à sociedade aberta, as ideologias totalitárias, de esquerda ou de direita, como o nacional-socialismo, ou nazismo, e o fascismo, que "continuam a tentar derrubar a civilização e regressar ao tribalismo". Por outras palavras, Karl Popper condenou a doutrina de Marx em nome da ideia de progresso de que Marx se reclamara.

Em terceiro lugar, Popper criticou duramente a ilusão do "socialismo científico" que Marx acabara por colocar no centro da sua doutrina. Popper mostrou que o "socialismo científico" simplesmente não existe. Trata-se de uma superstição primitiva e profundamente contrária à atitude científica, uma superstição dos que "acreditam que sabem, sem saberem que acreditam", a que Popper chamou de historicismo. Por outras palavras, Popper criticou a doutrina de Marx em nome da atitude científica de que este se reclamara.

Para Popper, o conflito que no século XX opôs as democracias liberais do Ocidente aos totalitarismos nazi e comunista foi, nos seus traços essenciais, um conflito semelhante ao que opôs a democracia ateniense à tirania espartana, no século V aC. As modernas democracias liberais são herdeiras de um longo processo de abertura gradual das sociedades fechadas, tribais e colectivistas do passado – processo que terá tido início em Atenas e noutras civilizações marítimas e comerciais como a da Suméria, e que recebeu um contributo decisivo do Cristianismo.

É esta sociedade aberta que está hoje de novo sob ataque cerrado do fundamentalismo islâmico e, em grau menor, da autocracia russa. Resta saber se ainda queremos defendê-la, ou se vamos render-nos à vulgata politicamente correcta, segundo a qual a culpa dos ataques que sofremos é sempre de nós próprios — da sociedade aberta do Ocidente, a que os seus inimigos chamam capitalista e imperialista.

2014-09-04

Os novos cátaros

P. Gonçalo Portocarrero de Almada - 4/9/2014

Observador

Um pregador católico inglês, do século passado, escandalizou os seus fiéis ao dizer que era mais provável que a alguém lhe roubassem a carteira numa igreja católica do que num templo anglicano. Inquirido sobre a sua falta de fé na honestidade dos irmãos da sua própria Igreja, esclareceu que, enquanto a Igreja anglicana é só para pessoas respeitáveis, a romana, precisamente porque é católica, ou seja universal, é para todo o tipo de pessoas, ladrões incluídos.

Alguns fiéis aceitam mal esta abertura, que consideram permissiva em demasia. E, por isso, em tempos de crise generalizada da fé e dos bons costumes, optam por se isolarem em pequenos grupos, evitando o pecaminoso contágio e afastando-se dos outros fiéis, não tão exemplares na ortodoxia ou na virtude. Em nome de uma Igreja dos puros, estes novos cátaros fazem da sua intransigência doutrinal o imperativo principal da sua fé, excluindo os pecadores do seu seio e excluindo-se da unidade eclesial. Esquecem, assim, o amor universal de Cristo, que não só conviveu com pecadores públicos, incorrendo no escândalo dos fariseus do seu tempo, como disse também que as mulheres de má-vida os iriam preceder no reino dos Céus (Mt 21, 31). E não relevam que Jesus, como a propósito de Judas Iscariotes fez notar Santo Agostinho, «aguentou um ‘demónio’ entre os seus discípulos até à sua Paixão (Jo 6,70)» (A fé e as obras, 3-5).

Não são só certos crentes que desejam uma Igreja de eleitos, constituída única e exclusivamente por fiéis exemplares. Também os incrédulos se escandalizam quando vislumbram, dentro dos muros dos templos cristãos, homens e mulheres pecadores, como o carteirista do sermão. Quereriam, eles também, uma Igreja sem mancha nem pecado, feita de anjos e não por homens, uma Jerusalém celestial que nada tivesse que ver com as fraquezas deste mundo.

Tanto uns como outros erram, porque se a Igreja é santa na sua origem e finalidade, é e será sempre pecadora nos seus membros terrenos. Assim o disse Cristo quando ensinou que o trigo e o joio devem permanecer juntos até à ceifa final (cf. Mt 13, 29), ou quando comparou o reino dos Céus a uma grande rede de arrasto, que traz consigo todo o tipo de peixes, bons e maus (Mt 13, 47-52). A Igreja de Cristo não está chamada a ser um luxuoso condomínio fechado, para exclusivo uso de umas quantas almas selectas, mas um pobre hospital de campanha, sempre de portas escancaradas para os seus filhos pecadores e para todos os homens de boa vontade. Os odores de santidade são para o outro mundo porque neste, mais do que as boas obras dos virtuosos, é a pestilência das doenças físicas e morais dos arrependidos o incenso com que Deus quer ser glorificado nos seus templos. Ele não veio ao mundo para os sãos, mas para os enfermos (Mc 2, 17) e é maior a sua alegria por um pecador que se converta, do que por noventa e nove justos que perseverem no bem (Lc 15, 1-7).

Vale mais a unidade da Igreja e a sua solidariedade com os pecadores do que esse rigorismo doutrinal, contrário à caridade apostólica. A tentação dos falsos purismos exclusivistas e sectários não é só de agora, porque também Santo Agostinho denunciou, no seu tempo, as «pessoas que só tomam em consideração os preceitos rigorosos, que mandam reprimir os que causam perturbação, que ordenam (…) que se ‘tratem como aos publicanos’ aqueles que desprezam a Igreja, que se repudiem do seu corpo os membros escandalosos (Mt 7,6; 18,17; 5,30)» (id.). Era também este santo doutor quem assim vituperava, energicamente, contra esses falsos pastores: «o seu zelo intempestivo causa muita tribulação à Igreja, porque desejariam arrancar o joio antes do tempo e a sua cegueira faz deles próprios inimigos da unidade de Jesus Cristo» (id.).

O bem da comunhão deve prevalecer sobre qualquer outro bem, porque a caridade é o mandamento novo de Cristo (Jo 13, 34-35), a principal das virtudes cristãs (1Cor 13, 13) e a razão da esperança na salvação de todos os homens, sem excepção. «Tomemos cuidado em não deixarmos entrar no nosso coração pensamentos presunçosos – adverte o santo bispo de Hipona – em não procurarmos destacar-nos dos pecadores, para não nos sujarmos com o seu contacto, em não tentarmos formar como que um rebanho de discípulos puros e santos. Sob o pretexto de não frequentarmos os maus, conseguiríamos apenas romper a unidade» (id.).

Há quem se escandalize por encontrar, na Igreja católica, pessoas cristãs que têm dúvidas de fé, ou que atentaram contra a vida dos seus filhos por nascer, ou que esmoreceram na esperança, ou que vivem em uniões não abençoadas pela Igreja, ou que não conseguem ainda amar e perdoar o próximo, ou que seguem tendências contrárias ao uso natural do corpo, ou que são alcoólicas, ou drogadas. Confesso que rejubilo com essas benditas presenças, em que abunda o pecado e sobreabunda a esperança, não só porque são almas predilectas de Deus – as ovelhas pelas quais vale a pena deixar todo o rebanho – mas, sobretudo, porque me sinto confirmado na unidade e catolicidade da minha fé eclesial.

Groucho Marx disse que jamais aceitaria fazer parte de um clube que admitisse pessoas como ele. Eu, pelo contrário, nunca poderia pertencer a uma Igreja que não recebesse pecadores como eu.

2014-09-01

Combater a desigualdade ou a pobreza?

JOÃO CARLOS ESPADA - Público - 25/08/2014

Na presente série de "leituras em férias", o livro de hoje é um best-seller da Amazon: Capital in the Twenty-First Century, do francês Thomas Piketty. São 685 páginas, densamente povoadas por gráficos e uma cerrada argumentação sobre o crescimento das desigualdades no ocidente desde a década de 1970.

A obra tem gerado abundante controvérsia, incluindo um editorial (crítico) e chamada de primeira página em The Economist, vários artigos (contra e a favor) no Financial Times. Para um modesto estudioso de teoria política, todos estes assuntos são motivo de admiração — a prudente distância. A obra é certamente admirável, pelo volume de evidência empírica que mobiliza. No entanto, receio ter de confessar que não estou seguro de ter compreendido o simples problema de partida que ele se propõe tratar: a magna questão da desigualdade.

Basicamente, é-nos dito que as desigualdades estão a aumentar no Ocidente e que estas devem ser corrigidas, sobretudo através de fortes impostos "globais" sobre os rendimentos do capital. Mas não é explicado por que motivo é a desigualdade um problema, nem por que motivo a igualdade (e que tipo de igualdade) seria preferível à desigualdade. (Há umas vagas e insistentes referências a "desigualdades democráticas", fundadas no mérito, e "não democráticas", fundadas em "rendas"). Por outras palavras, o livro parte de um dogma, que pode ser inteiramente acertado: o dogma de que a desigualdade é má. Mas não explica por que razão devemos aceitar esse dogma.

Este dogma é apresentado como auto-evidente. Tão auto-evidente que as grandes controvérsias económicas ter-se-iam centrado nele. O autor recorda duas perspectivas rivais: o pessimismo de Marx, que previa uma inevitável bipolarização entre ricos e pobres; e o optimismo de Kuznets, que previa uma natural redução das desigualdades através das forças de mercado. Diz que nenhum tinha razão, embora Marx pareça ter estado mais perto de Piketty.

Com o devido respeito, deve ser recordado que a discussão sobre a desigualdade não se resume ao confronto entre previsões sobre a sua provável evolução. Existe uma vasta tradição de reflexão crítica sobre o dogma de que a desigualdade de resultados é intrinsecamente condenável — e ela está ausente neste livro.

Em rigor, esse dogma é dificilmente sustentável — se for aceite o princípio da igual liberdade perante a lei (o que significa, entre outras coisas, ausência de protecção política discricionária a rendas de situação). Indivíduos igualmente livres vão poder agir diferentemente. Dessas diferentes acções, resultarão diferentes resultados. Logo, da liberdade igual perante a lei — um princípio crucial do Estado de direito — resulta a desigualdade de resultados.

Isto significa que uma presunção da liberdade implica uma presunção da desigualdade. Em alternativa, uma presunção da igualdade (como obviamente é a preferência de Thomas Piketty) implica uma negação da presunção da liberdade. É certamente possível negar a presunção da liberdade — mas é preciso dizê-lo abertamente, além de o justificar, o que não é o caso neste livro.

Na verdade, é possível argumentar que o imperativo moral prioritário reside no combate à pobreza, não no combate à desigualdade, e na criação de redes de segurança para todos, abaixo das quais ninguém deve recear cair. Muitos autores têm mesmo argumentado que os dois não são compatíveis: ou se combate a pobreza e se reforçam redes de segurança para todos, ou se combate a desigualdade — mas, neste último caso, a pobreza aumentará. Entre muitos autores, David Hume foi talvez quem captou esta escolha de forma mais cortante:

"Por mais igual que se torne a distribuição da riqueza, os diferentes graus de arte, interesse e indústria dos homens destruirão imediatamente essa igualdade. Ou, se controlarmos essas virtudes, reduziremos a sociedade à mais extrema indigência; e, em vez de evitarmos a necessidade e a penúria em alguns indivíduos, torná-las-emos inevitáveis para toda a comunidade. Será necessária também a mais rigorosa inquirição para detectar todas as desigualdades assim que elas surjam, bem como a mais severa jurisdição para as punir e corrigir" (An Enquiry Concerning the Principles of Morals, 1777).

Julgo que o (a mais do que um título) saudoso Ronald Reagan teria gostado deste livro de Piketty. Ele ilustra, com muito "mérito democrático", a visão política que Reagan sempre criticou: "If it moves, tax it. If it keeps moving, regulate it. And if it stops moving, subsidize it."