JOÃO MIGUEL TAVARES
Jornalista jmtavares@outlook.com
Público, 03/10/2013
Quando eu era criança e comecei a ter aulas de História, nenhuma personagem me fascinou tanto quanto Egas Moniz, aio de D. Afonso Henriques, que salvou o futuro rei no cerco de Guimarães ao prometer vassalagem a Afonso VII. Quando anos mais tarde o fogoso Afonso Henriques rompeu tal promessa, pondo em causa a palavra de Egas Moniz, diz a lenda que este colocou um baraço ao pescoço e foi entregar-se, com mulher e filhos, ao rei de Leão e Castela, para que ele dispusesse das suas vidas como entendesse. Camões cantou-o nos Lusíadas: "E com seus filhos e mulher se parte/ A alevantar co" eles a fiança,/ Descalços e despidos, de tal arte/ Que mais se move a piedade que a vingança." Segundo a mitologia, Afonso VII, impressionado com a grandeza de tal gesto, acabaria por poupar-lhe a vida: "Mas o rei, vendo a estranha lealdade,/ Mais pôde, enfim, que a ira, a piedade."
Se muito me tenho lembrado de Egas Moniz nos últimos tempos é porque esta mistura de patriotismo e respeito pela palavra dada se tornou tão tristementedémodé, numa altura em que era fundamental que estivesse viva e actuante. Apenas Paulo Portas se atreve a sugerir, nas suas intervenções, que há uma dimensão patriótica na luta que o país está a travar para sair da situação de resgate em que se encontra. Infelizmente, todos os outros partidos fogem deste género de formulação como o diabo da cruz, com medo do espectro do Estado Novo. Tanta carta da PIDE foi concluída com o terrível "a bem da nação" que hoje em dia falar do bem, da honra ou dos interesses da nação, como um todo, é uma espécie de actividade radical, a que poucos políticos se atrevem. O patriotismo em Portugal está reservado para os jogos de futebol. Sem calções e uma bola nos pés, é melhor nem falar nisso.
Ora, o problema de ainda identificarmos em 2013 o conceito de nação com a ditadura do Estado Novo é estarmos impedidos de deitar mão a uma retórica patriótica quando mais precisávamos dela, enquanto instrumento de motivação do país nesta crise tremenda e como forma de convocar as suas forças para sair do buraco em que estamos enfiados. Como fazê-lo sem parecer ridículo ou ser acusado de facho? Eis o enorme desafio. É que a pátria existe, está cá, não foi a lado nenhum, e todos nós nos sentimos portugueses. Mas como conceito politicamente operativo, quase ninguém parece ter coragem para afirmar aquilo que importa: o país deveria estar unido numa missão patriótica que lhe permitisse recuperar a sua plena independência. A corda já está no nosso pescoço, mas em vez de nós termos coragem para assumir as nossas dívidas e enfrentar os nossos devedores, e "alevantar co" eles a fiança", preferimos antes continuar a estrebuchar à medida que o nó vai apertando.
Quando eu ouço dizer que afinal não queremos 4% mas 4,5% de défice, quebrando promessas e ignorando todas as renegociações que já houve; quando ouço que afinal nem sequer queremos 4,5% mas antes 5%, esquecendo que o rolar da dívida só agrava o futuro; quando ouço que afinal temos é de pensar na saída do euro, implodindo todo o esforço dos últimos 35 anos para sermos um verdadeiro país europeu; quando ouço tudo isto, só me resta ter saudades de Egas Moniz e de quem colocava os interesses da pátria à frente dos seus e a palavra à frente da vida. Acreditem: eu detesto saloiices patrióticas. Mas pertenço a um país e a uma cultura, e esta atitude de pedinchice na era pós-Vítor Gaspar deixa-me profundamente envergonhado.
2013-10-05
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