É melhor ser coerente ou incoerente? Depende…
P. Duarte da Cunha | Voz da Verdade, 2014-01-12
Coerente diz-se de uma coisa que não contradiz com factos ou palavras o que anteriormente fora afirmado. A palavra vem do latim pela junção do prefixo co (=juntamente) com o verbo Haerere (=aderir) e evoca algo que está como que colado a outra coisa, ou seja, que é coeso. É uma palavra que tem diversas utilizações, desde o campo científico ao campo moral.
Neste momento interessa-nos sobretudo o seu uso no campo da moral. É mais ou menos óbvio que a coerência tem algo que ver com a palavra de honra e com a fidelidade aos compromissos e aos ideais, e, como tal, é normal considerá-la como uma coisa boa.
Parece, no entanto, que tem havido um uso em alguns casos abusivo e noutros desvirtuado deste conceito. Há, de facto, um paradoxo no nosso tempo a propósito da coerência. Por um lado, vai-se perdendo a confiança na palavra dada e com frequência pensa-se que um compromisso, no fundo, pode ser sempre desfeito, bastando para isso uma das partes julgar por razões fortes - ou simplesmente porque sim - que já não vale a pena continuar com o acordo feito. E, por outro lado, a coerência de um político, de um pensador, de um esposo, de um sacerdote, etc., é muitas vezes usado como o critério para avaliar do valor da pessoa e uma possível incoerência serve para considerar a pessoa não fiável.
Há quem comece a perceber que os novos meios de comunicação social trazem novas dimensões a este tema. Basta pensar que o que é colocado no Facebook hoje daqui a uns anos poderá vir a ser usada para acusar quem escreveu de ser incoerente ou não ser de confiança por causa do que disse há uns anos! Mesmo que a pessoa agora pense de maneira diferente, fica a marca, e o que disse no Facebook poderá tornar-se muito complicado para o resto da vida! Mas será justo que se alguém disse ou fez algo quando era jovem deva ficar marcado por esse facto para toda a vida? Não será isso um farisaísmo exagerado?
Aprofundemos a pergunta: temos de ser sempre coerentes com o que dissemos ou fizemos? Parece evidente que depende. Depende se estava certo ou errado, porque ser coerente com o erro e com o mal não é, claramente, uma virtude mas um vício. Devo ser incoerente e corrigir o meu pensamento e mudar o comportamento se necessário. Aliás, para ser coerente com a minha consciência devo continuamente procurar conhecer melhor a verdade e esse trabalho pode levar-me a concluir que estava errado e que devo mudar. Chama-se a isso conversão. Claro que se estou convencido que uma certa ideia ou atitude é justa devo ser coerente com a minha consciência e praticá-la ou defendê-la. Já quando se diz ou se faz o bem, é bom ser coerente. Devo ser fiel aos compromissos e coerente com a minha consciência, isso sim, mas não basta ser coerente por uma fixação que obrigaria a pessoa a ficar parada no passado e a não evoluir.
Outra implicação que devemos ter presente está no facto de ser muito complicado ser coerente com a verdade e com o bem ou ser incoerente com o mal e mudar. Num e noutro caso é preciso vencer tentações, ultrapassar debilidades, estar atento. Não pode ser um puro voluntarismo. Estaríamos a cair no pelagianismo que acredita que o homem se salva a si mesmo e consegue ser boa pessoa em tudo sem a graça de Deus. A insistência que hoje se faz na coerência é algo de bom, na medida que obriga as pessoas a serem sérias e a não mudarem de ideias consoante as oportunidades, mas é perigosa se deixa de estar ligada à procura da verdade e se se torna uma presunção humana de que se pode ser santo com o próprio esforço sem ser necessária a graça de Deus. A coerência com a verdade e com o bem, e, por isso, a vontade de progredir no caminho da descoberta do que é bom e verdadeiro, deve ser sempre alimentada por um pedido humilde e constante consciente de que sem a graça de Deus ninguém se consegue manter constante no bom caminho, tal como ninguém se sentirá com forças para uma autêntica conversão de vida.
Uma última nota pode ainda ser tocada para distinguir a coerência da fidelidade. Esta não é apenas a coerência com algo que se disse no passado. Seria ser infiel a uma amizade se ficássemos parados no tempo. A fidelidade é uma construção. A fidelidade numa amizade ou num casamento ou no sacerdócio é um trabalho quotidiano que alimenta e reforça os laços existentes. Nesse sentido, parece-me errado confundir fidelidade e coerência. A primeira é dinâmica, a segunda tem que ver com a estabilidade! Aliás, é possível que no caminho fiel haja caídas ou derrapagens que façam mossa à amizade, mas como não devemos ser coerentes com o erro feito, e podemos pedir perdão e voltar ao bom caminho, não se pode considerar que uma incoerência corrompa irremediavelmente os laços. É algo que fere e pode ser até muito complicado depois, mas não é necessário que mate a relação. Até acontece que algumas quedas fazem nascer uma fidelidade reforçada.
O Papa tem recordado a importância de acreditarmos no perdão de Deus. A misericórdia é o nome próprio de Deus. Mas também explica que a força da misericórdia está no facto de ela conduzir à conversão, ou seja, não só apaga o mal passado mas dá força para não se voltar a cair. Tenho pena quando alguém depois de uma infidelidade se envergonha e tem medo de pedir perdão, julgando que deve ser coerente com o erro. A mulher adúltera que os fariseus apresentam a Jesus fez mal. Não foi fiel e, por isso, é justamente considerada uma pecadora. Mas duas coisas deduzimos da atitude de Jesus. Primeiro que o facto de alguém ter um pecado não permite pensar que não tem remédio ou pensar que é pior do que nós. Afinal quem pode dizer a Deus que foi fiel em tudo? Segundo, que Jesus, que é Deus e tem, por isso, o poder de perdoar, usa de misericórdia para com a mulher e, por isso, acredita que ela deixa o pecado. Misericórdia sem força para levar à conversão seria pouco. Se Jesus tivesse perdoado sem dizer para ela não voltar a pecar seria deixar a pobre mulher mergulhada no mal. A misericórdia implica, por isso, a incoerência com o mal.
Coerente diz-se de uma coisa que não contradiz com factos ou palavras o que anteriormente fora afirmado. A palavra vem do latim pela junção do prefixo co (=juntamente) com o verbo Haerere (=aderir) e evoca algo que está como que colado a outra coisa, ou seja, que é coeso. É uma palavra que tem diversas utilizações, desde o campo científico ao campo moral.
Neste momento interessa-nos sobretudo o seu uso no campo da moral. É mais ou menos óbvio que a coerência tem algo que ver com a palavra de honra e com a fidelidade aos compromissos e aos ideais, e, como tal, é normal considerá-la como uma coisa boa.
Parece, no entanto, que tem havido um uso em alguns casos abusivo e noutros desvirtuado deste conceito. Há, de facto, um paradoxo no nosso tempo a propósito da coerência. Por um lado, vai-se perdendo a confiança na palavra dada e com frequência pensa-se que um compromisso, no fundo, pode ser sempre desfeito, bastando para isso uma das partes julgar por razões fortes - ou simplesmente porque sim - que já não vale a pena continuar com o acordo feito. E, por outro lado, a coerência de um político, de um pensador, de um esposo, de um sacerdote, etc., é muitas vezes usado como o critério para avaliar do valor da pessoa e uma possível incoerência serve para considerar a pessoa não fiável.
Há quem comece a perceber que os novos meios de comunicação social trazem novas dimensões a este tema. Basta pensar que o que é colocado no Facebook hoje daqui a uns anos poderá vir a ser usada para acusar quem escreveu de ser incoerente ou não ser de confiança por causa do que disse há uns anos! Mesmo que a pessoa agora pense de maneira diferente, fica a marca, e o que disse no Facebook poderá tornar-se muito complicado para o resto da vida! Mas será justo que se alguém disse ou fez algo quando era jovem deva ficar marcado por esse facto para toda a vida? Não será isso um farisaísmo exagerado?
Aprofundemos a pergunta: temos de ser sempre coerentes com o que dissemos ou fizemos? Parece evidente que depende. Depende se estava certo ou errado, porque ser coerente com o erro e com o mal não é, claramente, uma virtude mas um vício. Devo ser incoerente e corrigir o meu pensamento e mudar o comportamento se necessário. Aliás, para ser coerente com a minha consciência devo continuamente procurar conhecer melhor a verdade e esse trabalho pode levar-me a concluir que estava errado e que devo mudar. Chama-se a isso conversão. Claro que se estou convencido que uma certa ideia ou atitude é justa devo ser coerente com a minha consciência e praticá-la ou defendê-la. Já quando se diz ou se faz o bem, é bom ser coerente. Devo ser fiel aos compromissos e coerente com a minha consciência, isso sim, mas não basta ser coerente por uma fixação que obrigaria a pessoa a ficar parada no passado e a não evoluir.
Outra implicação que devemos ter presente está no facto de ser muito complicado ser coerente com a verdade e com o bem ou ser incoerente com o mal e mudar. Num e noutro caso é preciso vencer tentações, ultrapassar debilidades, estar atento. Não pode ser um puro voluntarismo. Estaríamos a cair no pelagianismo que acredita que o homem se salva a si mesmo e consegue ser boa pessoa em tudo sem a graça de Deus. A insistência que hoje se faz na coerência é algo de bom, na medida que obriga as pessoas a serem sérias e a não mudarem de ideias consoante as oportunidades, mas é perigosa se deixa de estar ligada à procura da verdade e se se torna uma presunção humana de que se pode ser santo com o próprio esforço sem ser necessária a graça de Deus. A coerência com a verdade e com o bem, e, por isso, a vontade de progredir no caminho da descoberta do que é bom e verdadeiro, deve ser sempre alimentada por um pedido humilde e constante consciente de que sem a graça de Deus ninguém se consegue manter constante no bom caminho, tal como ninguém se sentirá com forças para uma autêntica conversão de vida.
Uma última nota pode ainda ser tocada para distinguir a coerência da fidelidade. Esta não é apenas a coerência com algo que se disse no passado. Seria ser infiel a uma amizade se ficássemos parados no tempo. A fidelidade é uma construção. A fidelidade numa amizade ou num casamento ou no sacerdócio é um trabalho quotidiano que alimenta e reforça os laços existentes. Nesse sentido, parece-me errado confundir fidelidade e coerência. A primeira é dinâmica, a segunda tem que ver com a estabilidade! Aliás, é possível que no caminho fiel haja caídas ou derrapagens que façam mossa à amizade, mas como não devemos ser coerentes com o erro feito, e podemos pedir perdão e voltar ao bom caminho, não se pode considerar que uma incoerência corrompa irremediavelmente os laços. É algo que fere e pode ser até muito complicado depois, mas não é necessário que mate a relação. Até acontece que algumas quedas fazem nascer uma fidelidade reforçada.
O Papa tem recordado a importância de acreditarmos no perdão de Deus. A misericórdia é o nome próprio de Deus. Mas também explica que a força da misericórdia está no facto de ela conduzir à conversão, ou seja, não só apaga o mal passado mas dá força para não se voltar a cair. Tenho pena quando alguém depois de uma infidelidade se envergonha e tem medo de pedir perdão, julgando que deve ser coerente com o erro. A mulher adúltera que os fariseus apresentam a Jesus fez mal. Não foi fiel e, por isso, é justamente considerada uma pecadora. Mas duas coisas deduzimos da atitude de Jesus. Primeiro que o facto de alguém ter um pecado não permite pensar que não tem remédio ou pensar que é pior do que nós. Afinal quem pode dizer a Deus que foi fiel em tudo? Segundo, que Jesus, que é Deus e tem, por isso, o poder de perdoar, usa de misericórdia para com a mulher e, por isso, acredita que ela deixa o pecado. Misericórdia sem força para levar à conversão seria pouco. Se Jesus tivesse perdoado sem dizer para ela não voltar a pecar seria deixar a pobre mulher mergulhada no mal. A misericórdia implica, por isso, a incoerência com o mal.
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