2011-05-05

João Paulo II e a Liberdade

Transcrevo a seguir um artigo de João Carlos Espada sobre a contribuição do Papa João Paulo II para a nossa compreensão de um valor cada vez mais na agenda do nosso país: a Liberdade. Os sublinhados são meus.

João Paulo II

Público, 2011-05-02 João Carlos Espada

A beatificação de João Paulo II voltou a trazer à praça pública a memória do extraordinário Papa polaco. É difícil exagerar a importância e o alcance do seu pontificado, para católicos e não católicos, crentes e não crentes.
No plano político, todos reconhecem o papel decisivo de Karol Wojtyla no colapso final e pacífico do império soviético. Seria, por si só, uma realização de enorme magnitude. Mas, ao contribuir decisivamente para a desacreditação do regime soviético, o Papa polaco fez ainda mais. Restaurou o ideal de uma sociedade livre e do papel incontornável da liberdade religiosa - e não apenas da liberdade dos católicos - numa sociedade livre.

Karol Wojtyla podia ter defendido os direitos dos católicos polacos em nome do facto incontornável de que a Polónia era há muitos séculos uma nação de esmagadora maioria católica. Mas não foi exactamente isso que ele fez. Ele defendeu os direitos dos católicos polacos em nome da liberdade de consciência de todos, católicos e não católicos, crentes e não crentes.

Na linha do que fora consagrado pelo Concílio Vaticano II, João Paulo II defendeu a liberdade de consciência como expressão essencial da dignidade da pessoa humana. E apresentou a dignidade da pessoa humana como parte integrante da verdade revelada que o cristianismo convida o mundo a descobrir. Por outras palavras, João Paulo II fundou a liberdade na verdade, não na ausência dela, ou na equivalência relativista entre as verdades de cada um.

Ao fundar a liberdade na verdade da mensagem cristã acerca da dignidade da pessoa humana e da sua consciência, João Paulo II integrou a defesa da liberdade dos católicos na defesa da liberdade da consciência de todos. E reafirmou que uma sociedade livre é aquela em que a lei protege a liberdade das pessoas e limita o poder político, obrigando-o a respeitar essa liberdade.

Desta forma, João Paulo II refutou também as dúvidas ainda existentes entre alguns sectores católicos acerca da existência de um alegado "terceiro regime" entre o regime comunista e o impropriamente chamado "regime capitalista". Só há dois tipos de regimes: não livre e livre. Num regime livre, a liberdade da pessoa está no centro e abrange todas as dimensões: religiosa, cultural, política e económica. Não há por isso regimes livres sem empresa livre, ou com liberdade económica condicionada pelo capricho dos governantes. E não há ambiguidade sobre a posição dos católicos acerca desses dois regimes: eles são a favor dos regimes livres.
No interior de um regime livre, fundado nos direitos fundamentais da pessoa humana, existe uma permanente controvérsia em torno de diferentes propostas políticas, económicas, culturais. João Paulo II reafirmou que a Igreja não defende nenhum projecto político particular no interior de uma sociedade livre. A sua esfera não é política. Mas a mensagem religiosa da Igreja tem uma dimensão cultural pública que pode ser relevante para a saúde e robustez das sociedades livres.
Essa mensagem pode ser traduzida na ideia de que as virtudes morais são essenciais para a sustentação da liberdade. Sem autocontrolo, sem capacidade de diferir a gratificação, sem atenção à sorte do outro, a liberdade é ameaçada pela desconfiança mútua, pela indiferença, pela crueldade. A prazo, a anomia, ou ausência de regras de conduta cívica partilhadas, dará lugar à insegurança colectiva e esta à descrença na liberdade.

Em minha opinião, João Paulo II tornou acessível aos olhos do mundo a mensagem fundamental com que o cristianismo contribuiu decisivamente para a gradual emergência da civilização ocidental. A força não é o direito: a diferença entre o bem e o mal, o certo e o errado, a justiça e a injustiça não dependem dos caprichos dos poderes de plantão. Todo o poder deve ser limitado pela lei e pela moral. No centro dessa limitação de todos os poderes deve estar o respeito pela dignidade da pessoa, cujo núcleo é constituído pelo direito à vida e à liberdade.


João Carlos Espada é Director do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa; titular da cátedra European Parliament/Bronislaw Geremek in European Civilization no Colégio da Europa, Campus de Natolin, Varsóvia

Sem comentários:

Enviar um comentário